São Paulo, sábado, 16 de abril de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Poeta Jacques Roubaud lança "Algo: Preto", sobre o processo de luto pela morte de sua mulher, em 83

Matemática da alma

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Algo: Preto", primeiro livro de Jacques Roubaud publicado no Brasil, parece à primeira vista distante da tônica dominante em seu trabalho. Conhecido como um dos mais destacados poetas do Oulipo (movimento fundado na França em 1960 pelo escritor Raymond Queneau e pelo matemático François Le Lionnais), elabora nesse livro o trabalho de luto pela perda da mulher -a fotógrafa Alix Cléo, morta em 1983.
Mesmo nesse momento de intensidade existencial e dor, porém, conserva o rigor formal da literatura oulipiana, que consiste em estabelecer uma regra ou "restrição" que discipline a invenção. Foi a tensão entre forma e expressão, aliás, que levou a tradutora Inês Oseki-Dépré a optar por este título.
"Escolhi "Algo: Preto" porque constitui um dos mais belos poemas franceses contemporâneos", diz ela, que identifica uma lógica característica de Roubaud, "moderna e ao mesmo tempo rara na percepção do vazio ocasionado pelo desaparecimento da pessoa amada, reunindo sentimento universal e forma perfeita".
Autora de um trabalho de fôlego como a versão francesa de "Galáxias", de Haroldo de Campos, Oseki-Dépré encontrou no brasileiro um interlocutor para enfrentar as dificuldades do livro de Roubaud. Dificuldades que começam no título "Quelque Chose Noir", cuja tradução ao pé da letra seria "alguma coisa preto".
"O título de Roubaud", diz Oseki-Dépré, "é quase agramatical, na medida em que em francês se diz em geral "quelque chose de noir" ou "quelque chose noire". Era necessário manter essa estranheza. Não era possível tampouco traduzir "noir" por "negro", porque o "leitmotiv" da obra é a foto em preto-e-branco [por causa da referência a Alix Cléo, que era fotógrafa]. A perda dessa estranheza é compensada pelos dois pontos, sugestão de Haroldo de Campos".
Mas as traduções de Roubaud não param por aqui: as editoras Cosac Naify e 7 Letras anunciam para o segundo semestre a publicação de uma antologia do poeta dentro da coleção Ás de Colete. Organizado por Paula Glenadel e Carlito Azevedo, o volume incluirá poemas e textos teóricos selecionados em cerca de dez livros.
Leia a seguir entrevista em que o poeta e matemático nascido em 1932 recusa o rótulo de "cerebral" e explica a rígida estrutura matemática por trás de "Algo: Preto".

 

Folha - "Algo: Preto" representa uma mudança ou ainda obedece à idéia "oulipiana" de restrição?
Jacques Roubaud -
Este livro está ligado a um momento biográfico preciso, de luto. E, como tentativa de ultrapassar o silêncio que se segue ao luto, não constitui uma virada, mas um novo começo. Por outro lado, foi construído sobre um conjunto de restrições organizadas ao redor do número nove, que eu associo ao luto.

Folha - Por que essa associação?
Roubaud -
Associo a cada número uma "paisagem pessoal" feita de propriedades matemáticas, de referências poéticas (o número 14 é o soneto, por exemplo) e de emoções. Trata-se portanto de uma espécie de aritmética "neopitagórica": para os pitagóricos, os números não estão destinados apenas ao cálculo e à música, mas se associam a idéias (o cinco, por exemplo, está ligado à idéia de justiça). Eu me inspiro nesse modelo e o utilizo à minha maneira. No caso do nove, a idéia de tomar esse número como sinal do luto vem de um trabalho poético anterior, inspirado por Petrarca. Eu tinha feito o poema "Tombeau de Pétrarque" [túmulo de Petrarca], construído sob uma forma -a "novina"- que generaliza a "sextina" [também conhecida como "quenina": modelo de permutação de rimas criado por Queneau a partir da estrofe de seis versos inventada pelo trovador Arnaut Daniel e adotada por Dante e Petrarca, mas que pode ser generalizada pela fórmula "n-ina", com "n" correspondendo ao número de estrofes e versos]. Quando comecei a elaborar "Algo: Preto", pesquisando o número que determinaria a arquitetura do livro, esse poema pareceu antecipar a situação em que me encontrava.


Texto Anterior: Programação de TV
Próximo Texto: Roubaud metrifica ritmo das palavras em seus versos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.