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DRAUZIO VARELLA
As estrelas que o deputado viu
O exame da próstata revoltou o deputado baiano. Em
discurso na Assembléia Legislativa, queixou-se de ter "visto estrelas" e de ter saído do exame com
"o olho cheio de vaga-lumes".
Alegou ainda ser "angustiante
para um pai de família passar por
isso".
"Eu me senti deflorado", confessou. "O pior foi a frieza do médico
que, no fim da consulta, fez entrar
outro paciente como se nada tivesse acontecido", acrescentou indignado.
Como as queixas foram proferidas oficialmente por um representante do Poder Legislativo,
uma de nossas sociedades de urologia decidiu processar o deputado por entender que suas declarações estimulam preconceitos e desencorajam os homens a fazer a
prevenção do câncer de próstata.
Em homens com mais de 50
anos, o câncer de próstata é a
mais prevalecente das neoplasias
malignas. É uma neoplasia mais
freqüente nessa faixa etária do
que o câncer de mama nas mulheres. A doença se instala numa
área microscópica da glândula e
progride silenciosamente por períodos que podem chegar a vários
anos, oferecendo ampla oportunidade de detecção em fases ainda
passíveis de cura definitiva pela
cirurgia ou radioterapia.
Como a uretra, ao sair da bexiga, atravessa obrigatoriamente o
interior da próstata, nos estágios
mais avançados a multiplicação
desordenada das células malignas pode dificultar a passagem da
urina, provocando aumento do
número e diminuição do volume
das micções (especialmente no
período noturno) e crises de premência para urinar. No entanto,
como os mesmos sintomas são encontrados nos casos de simples hiperplasias prostáticas, condições
benignas que causam aumento
das dimensões da glândula, não
podemos confiar na sintomatologia para diferenciar tumores malignos de proliferações benignas.
Diagnosticada quando se encontra restrita a pequenas regiões
da próstata, a enfermidade chega
a ser curável em mais de 90% dos
casos. Já, nos estágios em que invade tecidos vizinhos, como as
paredes da bexiga, as vesículas seminais e os linfonodos (gânglios)
regionais, os índices de cura caem
significativamente.
Embora possam crescer na
maioria dos órgãos, quando se
disseminam, as células malignas
demonstram estranha predileção
pelo esqueleto. Para aninhar-se,
lançam mão de mecanismos
complexos que envolvem a liberação de substâncias para aumentar a porosidade e criar espaços
na massa óssea. A estratégia lhes
confere a capacidade de formar
focos de células prostáticas no interior dos ossos, subvertendo a ordem da natureza.
Nessa fase, caracterizada por
sintomas dolorosos, a doença é
considerada incurável, embora
possa ainda ser controlada e tornada assintomática através do
bloqueio da produção de testosterona -hormônio essencial à manutenção da viabilidade das células prostáticas-, da quimioterapia e de aplicações de radioterapia.
Daí a importância dos exames
preventivos, que, na verdade, não
passam de testes para detecção
precoce, uma vez que não dispomos de medicamentos ou estratégias capazes de impedir a carcinogênese e evitar a instalação do
carcinoma prostático.
A detecção precoce rotineira envolve a realização de dois exames:
dosagem de PSA no sangue e toque retal.
PSA é uma proteína produzida
pelas células da próstata, presente
na circulação de todos os homens.
Quando ocorre transformação
maligna, a multiplicação celular
descontrolada causa aumento
progressivo na concentração sangüínea dessa proteína. Níveis elevados de PSA fazem suspeitar de
tumor maligno e, eventualmente,
indicar biópsia da próstata.
O PSA é um exame de execução
simples, mas que exige interpretação cuidadosa:
1) Seus níveis são proporcionais
ao tamanho da próstata, podendo elevar-se também em doenças
benignas como prostatites ou hiperplasias benignas (falso positivo);
2) Em alguns casos de câncer de
próstata, o PSA não aumenta
(falso negativo).
Daí a importância do toque
prostático: ele permite avaliar as
dimensões e a consistência da
glândula, homogeneamente
amolecida nos casos benignos e
com tumorações endurecidas nos
processos malignos.
Por razões culturais, a necessidade do toque retal dificulta sobremaneira a detecção precoce do
câncer de próstata. Na clínica, encontro homens com mais de 60
anos que nunca se submeteram a
ele. Quando insisto na necessidade, argumentam:
- Esse exame não, doutor. Eu
não gosto.
- Mas não é para dar prazer,
respondo.
As mulheres cumprem a rotina
das avaliações ginecológicas e das
mamografias, submetem-se a
exames vaginais com espéculos
incômodos, suportam cauterizações de feridas no colo uterino
com paciência e disciplina. Nós
chegamos ao ridículo de correr
risco de morte por mera afirmação de masculinidade.
O deputado baiano certamente
exagerou na descrição de seu "defloramento"; talvez, nesse dia,
Sua Excelência estivesse com a
sensibilidade exaltada: de fato,
alguns homens se queixam de um
pouco de dor no momento do
exame, mas jamais ouvi alguém
dizer que viu estrelas, muito menos poéticos vaga-lumes.
Quanto às queixas a respeito da
"frieza" do urologista que fez entrar o paciente seguinte "como se
nada tivesse acontecido" com o
anterior, francamente, deputado,
não fica bem esperar despedidas
calorosas num momento desses.
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