São Paulo, sexta-feira, 16 de abril de 2010

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CARLOS HEITOR CONY

"Mayday" - Causas e efeitos


Nos aviões do futuro, só estarão na cabine um piloto obediente e um cachorro feroz


NÃO SOU um freguês da TV, mas acompanho com algum interesse os programas que tentam me ensinar qualquer coisa, desde tirar manchas de gordura dos sofás até fabricar porta-aviões. Aliás, creio que sou capaz, em dispondo de material, equipamento e pessoal especializado, de construir um porta-aviões, da primeira chapa de aço do poderoso casco à parafernália eletrônica da navegação e às catapultas que lançam os aparelhos no ar.
Trata-se de um conhecimento que, entre outros, me é completamente inútil. Jamais me atreverei a fabricar um porta-aviões, inclusive por não saber o que fazer com ele. Meu pai, por exemplo, aprendeu com um marinheiro de Honduras a fazer uma nota de dez virar uma nota de cem em qualquer cédula de trânsito internacional. Para ele, foi um tipo de sabedoria inútil, acredito que nunca tenha usado essa técnica em proveito próprio, servia apenas para fazer demonstrações de suas incríveis habilidades.
Um dos programas semanais que acompanho sempre que não tenho coisa mais interessante para fazer, é uma série intitulada "Mayday - Desastres aéreos". Viajo constantemente em avião e assistir ao programa é uma forma de me exorcizar do azar, sem ampliar concretamente as possibilidades de que as coisas não deem certo.
Aprendi, por exemplo, que, na gíria dos pilotos, além do pedido de emergência, sempre que há um problema mais sério, há o pedido que geralmente é um grito: "Mayday".
Perguntei a várias pessoas o que isso significava, sendo, como é, um aviso mais dramático do que o banal S.O.S das embarcações no mar. Podia ser dia de maio, 1º de maio, faça-se o dia ou a luz. Disseram-me que era corruptela em inglês de uma expressão francesa onde predomina o verbo "aider", ajudar. Vá lá que seja isso. O importante no programa não é a hora em que um dos pilotos, depois de se declarar em emergência, emite o grito que geralmente não é ouvido por ninguém.
Quanto ao conteúdo propriamente do programa, fiquei sabendo o que sempre desconfiava. Lugar-comum inarredável: pequenas causas podem gerar grandes efeitos. Outro dia, passaram dois acidentes aéreos provocados por uma peça, tipo parafuso, colocada na cauda do aparelho e acionada pelo sistema hidráulico do pedal da cabine de comando.
Essa peça provocou acidentes semelhantes em dois dos aviões mais modernos e seguros da frota que diariamente roda pelos céus do mundo. Ela comanda o leme da direção, fazendo o aparelho virar à esquerda ou à direita. Seu funcionamento não prevê uma retração quando não está sendo acionada pelo sistema hidráulico, fazendo o leme ficar estacionado numa posição sem retorno, indo numa só direção ou fazendo o avião rodar como um gigantesco pião solto no ar.
Outra causa pequenina que já provocou feio desastre foi uma fita tipo durex. Em terra, um funcionário foi limpar externamente a asa de um aparelho e colocou a fita em cima de um sensor, para que a sujeira não o entupisse. Esqueceu de tirar a fita. Sendo transparente, não foi notada pelo tripulante que examinou visualmente a aeronave antes do voo. O sensor alimentava o computador central, deu pane geral, quase 200 mortos.
Bem, depois de cada um desses emocionantes programas, faço juras de nunca mais botar os pés numa dessas geringonças esvoaçantes. Mas sei, como todo mundo sabe, que o avião é o meio de transporte mais seguro da história e lá vou eu para mais um compromisso, sabendo que um parafuso de 15 centímetros ou uma fita durex podem me mandar para o beleléu sem tempo e sem direito de dar o grito que ninguém escutará: "Mayday".
Já ouvi dizer que, nos aviões do futuro, só duas entidades estarão na cabine do comando: um piloto obediente e um cachorro feroz, tipo pit bull. O piloto é para informar aos passageiros que apertem os cintos quando o avião atravessa zona de turbulência. O cachorro é para avançar em cima do piloto se ele tentar mexer em alguma coisa. O problema é ensinarem o cachorro a gritar "mayday".
Antes que isso aconteça, prefiro viajar nos aviões tal como são, mesmo correndo todos os riscos da fragilidade material da qual todos somos feitos, aviões e seres humanos, inclusive os cachorros.


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