São Paulo, quarta, 16 de abril de 1997.

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Schubert oculta maravilhas a descobrir

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Neste ano se comemoram o bicentenário do nascimento de Franz Schubert (1797-1828) e o centenário da morte de Johannes Brahms (1833-1897). Há bem mais eventos em torno de Schubert do que de Brahms. O ouvinte da rádio Cultura FM já sabe: estamos em pleno ano Schubert.
Claro que um bicentenário é mais importante do que um simples centenário; mas as razões para o destaque a Schubert são outras, a meu ver. É que a música de Brahms, de certo modo, está com um lugar fixo, estabelecido no repertório. Schubert, por incrível que pareça, não.
Talvez Brahms nunca tenha composto melodias tão famosas quanto a ``Ave Maria'' ou um dos temas da ``Sinfonia Inacabada'', de Schubert. Mas é este, ainda, o maior desconhecido. Poucos já ouviram todas as suas sonatas para piano, todas as suas sinfonias, todos os seus quartetos. Torna-se mais importante, assim, divulgar a música de Schubert do que celebrar o velho Brahms.
Mas aqui entramos no problema real, no dado oculto em torno do bicentenário de Schubert. Há maravilhas a descobrir, sem dúvida. Mas todo apreciador de música clássica, imagino, tem uma relação ambígua com Schubert, e é isso o que passo a comentar.
Muitas páginas de Schubert são encantadoras, hipnóticas, belíssimas desde os primeiros compassos. Penso no andante da "Sonata para Piano em Si Bemol Maior"; no segundo movimento do "Quarteto em Lá Menor" (o tema de ``Rosamunde'', retomado no "Improviso" op. 142 nš 3); em ``A morte e a Donzela'', em ``A Truta''. A lista poderia não terminar nunca.
Esqueci-me do andante do "Trio", op. 100. Há nesses trechos, quase sempre, um espírito de compostura, um ritmo cortês, quase aflito, no acompanhamento; sobre o tom pontuado, tenso, quase solene, quase brincalhão, abre-se um canto sobre-humano, nem alegre nem triste, num misto de calor e resignação.
Ninguém mais do que Schubert sabe tirar das notas essa mistura de magia e naturalidade; há nele o paradoxo de um lirismo tão espontâneo que se torna até misterioso, tão direto que se faz evasivo, suas melodias são de uma flexibilidade quase imóvel, enquanto o acompanhamento e a harmonia agem como o claro-escuro, o jogo de sombras que segue, instável, o passo do viajante.
Muito já se disse sobre o aspecto ``viajante'', sobre o ímpeto do peregrino, do ``wanderer'', nas composições de Schubert. Há uma espécie de otimismo no início da caminhada; as famosas alternâncias entre modo maior e menor, que o compositor usa magistralmente, funcionam quase com a simplicidade meteorológica de uma tarde indecisa entre sol e chuva.
É como se não houvesse um ``compositor'' em ação quando ouvimos esses temas. A dor se sublima a tal ponto que quase deixa de ser música, e certamente deixa de ser o reflexo de um estado de espírito; não é nem sequer consolação, alívio, lembrança de felicidade; é o espírito em si mesmo, em estado, senão de inocência, de vida imaculada.
É uma música quase ``esportiva'', se pudermos dizer assim. Nada mais pungente do que a primeira variação no andante do "Quarteto em Ré Menor" (``A morte e a Donzela''); nada mais saltitante também. Alegre? Triste? Que sabemos? A música, que sempre foi a mais misteriosa das artes, se torna aqui mais misteriosa e enigmática, à medida que nem mesmo se importa em ``traduzir'' um sentimento -de ânimo, entusiasmo, desconsolo ou raiva. Schubert não descreve mais nenhum estado de alma. Descreve, na verdade, um ``estado de música''.
É que esses trechos de Schubert pairam além da alma, ou melhor, ``atrás'' da alma, como se as notas da partitura ganhassem vida própria, não estivessem a serviço de subjetividade alguma e fossem, quase fisiologicamente, o palpitar do coração.
Mas o problema de Schubert, para mim pelo menos, é que suas composições não se resumem a isso. É como se a terra, a vida real, cobrassem um preço pelo milagre que ocorreu.
E aí entramos no lado mais penoso, mais pesado, destas comemorações em torno do bicentenário do autor. É que Schubert, quando menos se espera, torna-se enfático, repetitivo, chato, enfim.
Os apreciadores de música clássica tendem a fugir de suas sonatas para piano, por exemplo. Sabem da extensão de cada reprise, das insistências intermináveis, das voltas que terão de acompanhar.
É como se a mesma inconsciência que faz de Schubert um compositor tão puro fosse ao mesmo tempo o fator que o torna tão repetitivo. O que acontece, então?
Tome-se o segundo movimento do "Quarteto em Lá Menor", um entre tantos exemplos. O tema de Rosamunde é de uma beleza quase irreal. Mas Schubert se sente obrigado a desenvolvê-lo, a ``dramatizá-lo''.
A sombra de Beethoven, como se sabe, era acachapante para Schubert, e o puro lirismo tem de ser vencido, assim, por um ímpeto de dramaticidade, por uma veemência tipicamente beethoveniana.
O contraponto parece estar batendo a cabeça contra a parede. Esse ``bater a cabeça'' era tipicamente beethoveniano, mas aqui perde em consistência intelectual para se tornar, creio, simples gesticulação. O que em Beethoven correspondia a um impulso épico, a uma figuração da liberdade, torna-se aqui mera violência, violência do erudito contra o popular.
Beethoven parecia sacudir o jugo da forma, estando apesar disso integrado na forma; o dramático em Schubert já aparece, entretanto, como pura repressão.
Não é só isso. A ``política'' de Schubert, se pudermos dizer assim, arrepende-se dessa repressão, claro, e então repete mais uma vez o tema lírico que estava tentando afogar em drama. O resultado é que muitos movimentos de sonata parecem não acabar nunca; as alternâncias se dão entre ``esquerda'' e ``direita'', como nos gabinetes de um regime parlamentarista, enquanto que em Beethoven, bem, tratava-se de um verdadeira revolução.
A solução dessa alternância talvez esteja prefigurada na "Sonata para Piano em Si Bemol", uma das últimas que o compositor escreveu. Aqui, nem sempre a melodia lírica se alterna com a erudição dramática. Surge um outro fator: a interrupção, o silêncio. O famoso trinado em sol bemol na mão esquerda, como ameaça fantasmagórica no primeiro movimento, é respondido pela nota isolada, como que um som de sino, no rondó final.
Nos dois casos, é como se Schubert figurasse, musicalmente, o silêncio. O silêncio que há quando amanhece, quando o sol se põe, ou quando vai chover; algo de tão natural, e de tão arbitrário, quanto a felicidade secreta da música que vinha antes. Não o preço, em todo caso, que a matéria cobra do espírito em tantas de suas composições.
Que sei de tudo isso? Só sei que se Schubert tivesse vivido mais (morreu aos 31 anos), talvez não tivéssemos sido capazes de suportá-lo. Seu lugar na história da música teria sido, talvez além de Mozart, o de uma entidade encontrada por acaso na Terra, capaz sozinha de criar um outro céu, outras estrelas. Estaria provavelmente além do nosso alcance.

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