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Schubert oculta maravilhas a descobrir
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Neste ano se comemoram o
bicentenário do nascimento de
Franz Schubert (1797-1828) e o
centenário da morte de Johannes Brahms (1833-1897). Há
bem mais eventos em torno de
Schubert do que de Brahms. O
ouvinte da rádio Cultura FM
já sabe: estamos em pleno ano
Schubert.
Claro que um bicentenário é
mais importante do que um
simples centenário; mas as razões para o destaque a Schubert são outras, a meu ver. É
que a música de Brahms, de
certo modo, está com um lugar
fixo, estabelecido no repertório. Schubert, por incrível que
pareça, não.
Talvez Brahms nunca tenha
composto melodias tão famosas quanto a ``Ave Maria'' ou
um dos temas da ``Sinfonia
Inacabada'', de Schubert. Mas
é este, ainda, o maior desconhecido. Poucos já ouviram todas as suas sonatas para piano, todas as suas sinfonias, todos os seus quartetos. Torna-se
mais importante, assim, divulgar a música de Schubert do
que celebrar o velho Brahms.
Mas aqui entramos no problema real, no dado oculto em
torno do bicentenário de Schubert. Há maravilhas a descobrir, sem dúvida. Mas todo
apreciador de música clássica,
imagino, tem uma relação ambígua com Schubert, e é isso o
que passo a comentar.
Muitas páginas de Schubert
são encantadoras, hipnóticas,
belíssimas desde os primeiros
compassos. Penso no andante
da "Sonata para Piano em Si
Bemol Maior"; no segundo
movimento do "Quarteto em
Lá Menor" (o tema de ``Rosamunde'', retomado no "Improviso" op. 142 nš 3); em ``A
morte e a Donzela'', em ``A
Truta''. A lista poderia não
terminar nunca.
Esqueci-me do andante do
"Trio", op. 100. Há nesses trechos, quase sempre, um espírito de compostura, um ritmo
cortês, quase aflito, no acompanhamento; sobre o tom pontuado, tenso, quase solene,
quase brincalhão, abre-se um
canto sobre-humano, nem alegre nem triste, num misto de
calor e resignação.
Ninguém mais do que Schubert sabe tirar das notas essa
mistura de magia e naturalidade; há nele o paradoxo de
um lirismo tão espontâneo que
se torna até misterioso, tão direto que se faz evasivo, suas
melodias são de uma flexibilidade quase imóvel, enquanto o
acompanhamento e a harmonia agem como o claro-escuro,
o jogo de sombras que segue,
instável, o passo do viajante.
Muito já se disse sobre o aspecto ``viajante'', sobre o ímpeto do peregrino, do ``wanderer'', nas composições de Schubert. Há uma espécie de otimismo no início da caminhada; as famosas alternâncias
entre modo maior e menor,
que o compositor usa magistralmente, funcionam quase
com a simplicidade meteorológica de uma tarde indecisa entre sol e chuva.
É como se não houvesse um
``compositor'' em ação quando
ouvimos esses temas. A dor se
sublima a tal ponto que quase
deixa de ser música, e certamente deixa de ser o reflexo de
um estado de espírito; não é
nem sequer consolação, alívio,
lembrança de felicidade; é o
espírito em si mesmo, em estado, senão de inocência, de vida
imaculada.
É uma música quase ``esportiva'', se pudermos dizer assim.
Nada mais pungente do que a
primeira variação no andante
do "Quarteto em Ré Menor"
(``A morte e a Donzela''); nada
mais saltitante também. Alegre? Triste? Que sabemos? A
música, que sempre foi a mais
misteriosa das artes, se torna
aqui mais misteriosa e enigmática, à medida que nem
mesmo se importa em ``traduzir'' um sentimento -de ânimo, entusiasmo, desconsolo ou
raiva. Schubert não descreve
mais nenhum estado de alma.
Descreve, na verdade, um ``estado de música''.
É que esses trechos de Schubert pairam além da alma, ou
melhor, ``atrás'' da alma, como
se as notas da partitura ganhassem vida própria, não estivessem a serviço de subjetividade alguma e fossem, quase
fisiologicamente, o palpitar do
coração.
Mas o problema de Schubert,
para mim pelo menos, é que
suas composições não se resumem a isso. É como se a terra,
a vida real, cobrassem um preço pelo milagre que ocorreu.
E aí entramos no lado mais
penoso, mais pesado, destas
comemorações em torno do bicentenário do autor. É que
Schubert, quando menos se espera, torna-se enfático, repetitivo, chato, enfim.
Os apreciadores de música
clássica tendem a fugir de suas
sonatas para piano, por exemplo. Sabem da extensão de cada reprise, das insistências intermináveis, das voltas que terão de acompanhar.
É como se a mesma inconsciência que faz de Schubert um
compositor tão puro fosse ao
mesmo tempo o fator que o
torna tão repetitivo. O que
acontece, então?
Tome-se o segundo movimento do "Quarteto em Lá
Menor", um entre tantos
exemplos. O tema de Rosamunde é de uma beleza quase
irreal. Mas Schubert se sente
obrigado a desenvolvê-lo, a
``dramatizá-lo''.
A sombra de Beethoven, como se sabe, era acachapante
para Schubert, e o puro lirismo
tem de ser vencido, assim, por
um ímpeto de dramaticidade,
por uma veemência tipicamente beethoveniana.
O contraponto parece estar
batendo a cabeça contra a parede. Esse ``bater a cabeça'' era
tipicamente beethoveniano,
mas aqui perde em consistência intelectual para se tornar,
creio, simples gesticulação. O
que em Beethoven correspondia a um impulso épico, a uma
figuração da liberdade, torna-se aqui mera violência, violência do erudito contra o popular.
Beethoven parecia sacudir o
jugo da forma, estando apesar
disso integrado na forma; o
dramático em Schubert já aparece, entretanto, como pura repressão.
Não é só isso. A ``política'' de
Schubert, se pudermos dizer
assim, arrepende-se dessa repressão, claro, e então repete
mais uma vez o tema lírico que
estava tentando afogar em
drama. O resultado é que muitos movimentos de sonata parecem não acabar nunca; as
alternâncias se dão entre ``esquerda'' e ``direita'', como nos
gabinetes de um regime parlamentarista, enquanto que em
Beethoven, bem, tratava-se de
um verdadeira revolução.
A solução dessa alternância
talvez esteja prefigurada na
"Sonata para Piano em Si Bemol", uma das últimas que o
compositor escreveu. Aqui,
nem sempre a melodia lírica se
alterna com a erudição dramática. Surge um outro fator:
a interrupção, o silêncio. O famoso trinado em sol bemol na
mão esquerda, como ameaça
fantasmagórica no primeiro
movimento, é respondido pela
nota isolada, como que um
som de sino, no rondó final.
Nos dois casos, é como se
Schubert figurasse, musicalmente, o silêncio. O silêncio
que há quando amanhece,
quando o sol se põe, ou quando vai chover; algo de tão natural, e de tão arbitrário,
quanto a felicidade secreta da
música que vinha antes. Não o
preço, em todo caso, que a matéria cobra do espírito em tantas de suas composições.
Que sei de tudo isso? Só sei
que se Schubert tivesse vivido
mais (morreu aos 31 anos), talvez não tivéssemos sido capazes de suportá-lo. Seu lugar na
história da música teria sido,
talvez além de Mozart, o de
uma entidade encontrada por
acaso na Terra, capaz sozinha
de criar um outro céu, outras
estrelas. Estaria provavelmente além do nosso alcance.
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