São Paulo, Sexta-feira, 16 de Abril de 1999
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"TIRADENTES"
Pesquisadores criticam construção esquemática dos inconfidentes e falta de uma idéia sobre o movimento
Para historiadores, personagens são rasos

da Redação

As "liberdades históricas" assumidas em "Tiradentes", diferentemente do que se poderia esperar, não foi o que mais incomodou dois historiadores convidados pela Folha para assistir ao filme.
Laura de Mello e Souza, professora do departamento de história da USP (Universidade de São Paulo), e Pedro Puntoni, pesquisador do Cebrap, porém, foram unânimes em criticar diversos aspectos da obra. Muitas das reclamações foram abordadas pelo diretor Oswaldo Caldeira em sua entrevista.
A principal crítica foi quanto à caracterização dos personagens, definida como "rasa" por ambos. Eles teriam sido concebidos de forma "chapada", como se não tivessem dúvidas, contradições.
Laura, que vê o alferes como "uma das figuras mais extraordinárias da nossa história, cheio de generosidades e maluquices", não gostou de sua apresentação. "O filme passa a versão de que a maluquice está só na visão dos oponentes. Tudo indica que ele era meio desequilibrado, contraditório, complexo, recalcado e complexado. E isso não aparece no filme." Ela lembra que Tiradentes se achava feio. "No filme, ele é o bonitão."
Puntoni, que também é professor de história da USP, segue na mesma linha: "Eles não parecem personagens de um roteiro. São apresentados prontos. Silvério (Joaquim Silvério dos Reis) estava pronto para delatar antes de conhecer a revolta. O traidor é o traidor desde a primeira cena".
Laura também criticou a apresentação de Claudio Manuel da Costa: "É uma das figuras mais dramáticas da Inconfidência. É o único que aparece com alguma angústia, mas é uma coisa rápida".
Oficialmente Costa se suicidou, mas alguns historiadores acreditam que ele foi assassinado, o que é sugerido pelo filme. A professora, contrária a essa leitura, apesar de considerá-la plausível, prefere o suicídio justamente por causa das características do poeta que ela não viu retratadas no filme.
"Costa era um cavaleiro de dois mundos, totalmente dividido. Sua lírica expressa isso, tem um profundo sentimento da terra. É um bom exemplo do dilema do intelectual brasileiro, o homem culto que vive na periferia. Pertence a um universo de cultura que é o europeu, mas tem remorso por ter nascido aqui. E agiu pessimamente. Seu depoimento contra os amigos é dos mais horrorosos", afirmou. Essa visão, além do fato de que o poeta estava com 60 anos, leva Laura a acreditar que ele tinha motivos para se suicidar.
Mesmo aqui, a bronca não visou a versão assumida, mas a falta de complexidade do personagem. Como contraponto, citou "Os Inconfidentes", de Joaquim Pedro de Andrade, no qual esses dilemas estariam mais bem retratados.
Para os historiadores, a opção narrativa, mesclando textos poéticos e discursos históricos a uma representação alegórica, não funcionou. Segundo Puntoni, o diretor caiu no erro "de achar que dá para fazer uma reconstrução histórica apenas pelo discurso".
Ele também sentiu falta de planos exteriores que mostrassem o ambiente: "Você não vê a Minas Gerais do século 18". Sem isso, "as cenas se concentram ao redor de mesas para o café, para o jantar. E o filme vira uma discurseira. Parece que estamos diante de uma novela da Globo".
Na visão de Laura, "o filme não teve reflexão, só transpôs os documentos para a boca dos personagens, sem se deter sobre o sentido do período". Ela viu na opção narrativa uma "reminiscência do cinema novo que está deslocada. Na época tinha sentido, mas agora..."
Quanto às "falhas históricas", sentiu falta de menções ao contrabando, ao qual vários inconfidentes estariam ligados. Puntoni, de uma cenografia mais fiel ao período. Para ele, a preocupação que Caldeira teve com os textos deveria aparecer também nas imagens.
O esquematismo dos personagens e a ineficiência da alegoria, segundo eles, fizeram com que o filme não conseguisse fugir de uma representação oficial de Tiradentes. As cenas do cotidiano, com o alferes bebendo e visitando bordéis, não teriam sido suficientes para trazer um novo olhar sobre o episódio e seus personagens.
Os elogios ficaram restritos à atuação de alguns atores, como Cláudio Correa e Castro e Cláudio Cavalcanti, e à escolha de boas falas para os personagens.
Os historiadores, quase como espectadores comuns, criticaram a falta de densidade dramática do filme, o que dificultaria o envolvimento do espectador. "Não tem tragédia. Você não fica com pena do Tiradentes", reclamou Laura. "Faltou cinema", afirmou Puntoni. (JOÃO LEIVA FILHO)


A colunista Erika Palomino, de Noite Ilustrada, está em férias


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