São Paulo, quinta-feira, 16 de maio de 2002

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MÚSICA

Aos 59 anos, cantor baiano dedica CD e DVD diferentes à obra do ícone do reggae, gravados em parte na Jamaica

Gil grava Marley e busca o "acima do muro"

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Após anos de adiamento, Gilberto Gil concretiza o plano de dedicar um disco (quase todo em inglês) ao repertório do jamaicano Bob Marley. "Kaya n'Gan Daya" chega às vésperas de Gil completar 60 anos, mas ele diz que não o vê como uma celebração da data.
"Já vinha com esse projeto havia algum tempo, a data é só coincidência. Nunca gostei de festa minha, sempre foi constrangedor para mim. É como estar numa roda de samba e alguém dar uma umbigada para você entrar na roda, ficar no centro", diz.
Afirma, também, que a chegada dos 60 não o afeta: "Estou achando que a velhice está ótima. As décadas não se manifestam em mim, são só uma convenção automática, de efeito psicológico".
Continua: "Aos 60, tenho menos medo de morrer. O jovem tem certeza de tudo, é curioso, interrogativo, vê a morte como acidental. Hoje, na minha idade, sou mais entregue. Já passei da metade, já estou ladeira abaixo".
À parte temas assim, mostra-se mais entusiasmado que de costume, seja na entrevista ou durante o evento de lançamento do DVD correspondente ao disco (com versão ao vivo e um documentário sobre a produção no estúdio).
"Tem a ver com a extraordinária paixão que tenho por Marley", explica. "Tenho de ser menos blasé e afastado, porque é um projeto amplo. Há o significado de Marley para a música do mundo, para a Jamaica e para o Brasil, porque o reggae foi adotado aqui quase como gênero local. Marley foi importante para processos libertários políticos e existenciais, com a questão da maconha, do vegetarianismo, o novo tribalismo que investia na recuperação da tradição indígena", enumera.
Gil canta o discurso político agudo de Marley, mas diz que não veste sua fantasia: "É uma visão antropológica minha, não estou necessariamente usando o hábito do monastério rastafári. A religiosidade dele é o lado que menos me entusiasma, porque me lembra um pouco do crescimento das igrejas evangélicas no Brasil".
Comenta, então, o caso de estar fazendo, pela primeira vez, um trabalho todo focado num determinado movimento de raiz negra: "Nunca fiz porque não acredito na minha eficácia. Não sou um guerreiro, sou um diplomata. Inclusive de todas as causas negras".
"Kaya n'Gan Daya" foi gravado em parte no quintal jamaicano do reggae, com visitas do grupo vocal feminino I-Three (da mulher de Bob, Rita Marley) e da dupla Sly & Robbie (além dos brasileiros Paralamas do Sucesso e Skank).
Gil lamenta e justifica a falta dos Wailers, banda original de Marley: "É a grande ausência do CD. Eles moram em Miami, e há dificuldades deles com a família Marley, problemas de espólio".
O CD não é, segundo Gil, de releituras, no sentido de conferir a canções conhecidas novas roupagens. "Usei aquele sentimento juvenil de ouvir algo no rádio e querer reencarnar, imitar, como queria fazer com João Gilberto quando adolescente. Já fiz isso um pouco com Luiz Gonzaga, é como se minha voz fosse um eco."
Estaria ele escondendo sua identidade por trás das outras? "Não necessariamente oculto minha identidade, mas dou a ela um descanso que me propicia um exercício da outra faceta. E Gil está lá, não está se escondendo debaixo da sombra do Marley. Tenho vontade de fazer isso com o samba, pode ser meu próximo CD, fechando uma trilogia."
Identidade bifurcada ele exibe em "Table Tennis Table", única composição sua no álbum, em que brinca com uma conversa entre "eu e eu", evocando também a anterior "Você x Você" (93). "É o "I and I" do dialeto rasta, que significa "nós". Não sei por que converso comigo mesmo nessas canções, acho que é a coisa das dualidades -bem e mal, paz e guerra, compreensão e intolerância."
Estaria tudo isso embutido no "eu x eu" de Gil? "É também a tentativa de superar as dicotomias pelo entendimento dos complementares, de não estar mais em cima do muro, mas acima do muro, de não ter medo de cair para o lado de lá ou de cá. Parei de buscar isso, de ter essa pretensão, apesar de que a busca não pára nunca", confessa, paradoxal.



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