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São Paulo, sexta-feira, 16 de maio de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Nada além da cruz, da espada e do livro

Parece que já morreu; quando o conheci, já era entrado em anos, devia ter seus 60, 65 anos e sofria de diabetes, estava acima do peso, bebia e fumava, enfim, só por um milagre da natureza e da medicina poderá ainda estar vivo, 40 anos depois.
Parece também que era baiano, ou vagamente baiano, um sergipano talvez, ou alguém nascido por lá. Tinha um comportamento social exemplar, não esquecia datas de aniversário dos amigos e suas consortes, não perdia velório e missas de sétimo dia, em alguns casos, até as missas de 30º dia e de primeiro ano do passamento. Foi com baita admiração que o vi na minúscula fila dos cumprimentos após a missa de um ano do falecimento de meu pai, cerimônia restrita aos parentes mais próximos, que nem chegara a ser anunciada nem comunicada a ninguém. Como ele soubera é um dos mistérios, que, acrescentados a outros, levarei eu próprio para a sepultura.
Além do impecável comportamento social, tinha ele outra notável qualidade: a de orador. Orador em qualquer solenidade ou evento, um batizado, um casamento, um aniversário, tendo sua "finest hour" em dois momentos específicos: à sobremesa de qualquer ágape festivo e à beira de qualquer túmulo.
Muito me emocionei, diversas e frequentes vezes, com seus discursos, que tinham uma fórmula genial e bastante para qualquer oportunidade. Contam que em Portugal havia um célebre orador sacro que pronunciava o mesmo sermão em louvor de qualquer santo, mudando apenas alguns dados biográficos e locais. Certa vez, estava muito cansado e fora convidado a fazer o sermão em louvor do Divino Espírito Santo. Distraído, tendo feito dias antes um sermão a santo Antônio, assumiu o púlpito e começou: "O Divino Espírito Santo nasceu em Lisboa em 1195 e morreu em Pádua, em 1231..."."
O meu orador não chegava a tanto, mas também tinha o seu esquema de discurso, que se baseava em três partes imutáveis, que ele, com assombrosa nitidez, anunciava como títulos em caixa alta num texto que se podia ler ao sair de sua boca: a cruz, a espada e o livro.
Dividido o discurso em três partes básicas, não era difícil adaptá-lo às circunstâncias, fosse o homenageado um bispo, um militar ou um escritor. Com alguma sabedoria e vasta experiência, ele descobrira que essas três categorias são as mais sensíveis ao louvor e, por isso, funcionavam como um sólido chassi sobre o qual ele montava sua estupenda carroceria de elogios, sabendo que o homenageado fatalmente pertenceria a uma das três classes esquemáticas.
A cruz, dizia ele, fora trazida nas caravelas de Cabral e fincada para sempre em terras brasílicas. A espada defendera o Império na guerra do Paraguai e a liberdade do mundo nos campos da Itália, brandida pelos nossos heróicos pracinhas. E o livro, o livro às mancheias, fora cantado pelo poeta dos escravos, o imenso, o oceânico Castro Alves. E por aí ia ele, fosse um velório ou um jantar em homenagem a alguém que fazia anos, fora nomeado ou promovido a qualquer coisa.
E, mesmo quando o homenageado não era nenhuma das três coisas, com espantosa habilidade ele adaptava a cruz, a espada e o livro ao futuro da criança, no caso de um batizado, prevendo que o recém-nascido teria sua vida pautada pela cruz, pela espada ou pelo livro.
Num casamento, por mais modesto que fosse, de um bancário em início de carreira ou de um extranumerário da Rede Ferroviária Federal, ele dava um jeito de encaixar a cruz, a espada e o livro, garantindo que o casal teria a perene proteção da cruz, a certeza de que a espada defenderia os valores civilizatórios da nação e da família e de que o livro seria a fonte de sabedoria de seus descendentes pelos tempos afora.
Eu gostava de ouvi-lo, apreciava seu malabarismo verbal e mental de realizar tantas e tamanhas voltas sem se afobar, dando a impressão de que improvisava ao mesmo tempo em que profetizava.
Tanto gostei que dele não pude escapar na única ocasião em que ele me prestou a homenagem de seu verbo. Eu havia operado um joelho arrebentado numa pelada de futebol de praia. Passei cinco dias numa casa de saúde e, ao receber alta, estava no quarto com meus pais, um dos meus irmãos, a namorada daquele tempo e os dois médicos que haviam cuidado de mim.
Subitamente, a porta que dava para o corredor se abriu e ele meteu a cara numa ação investigativa, para ver se não havia se enganado de quarto. Quando teve a certeza de que estava no lugar adequado, percebi que não poderia evitar a catástrofe. Mesmo assim, apresentei-o com modestas palavras aos presentes, agradecendo a visita inesperada e me apressando a ir embora.
Ledo e ivo engano! Ele percebeu a manobra e, mesmo que não tivesse percebido, daria na mesma, Pediu a palavra, saudou minha recuperação. Napoleão, ao curar um ferimento após a batalha de Marengo, não recebeu a mesma louvação nem teve o seu futuro tão exaltado.
O meu amigo só cometeu um erro, relevado pelos presentes: disse que eu me livrara de um apêndice e me augurou uma vida saudável e proveitosa, abençoada pela cruz, protegida pela espada e aperfeiçoada pelo livro.


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