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CARLOS HEITOR CONY
Nada além da cruz, da espada e do livro
Parece que já morreu;
quando o conheci, já era entrado em anos, devia ter seus 60,
65 anos e sofria de diabetes, estava acima do peso, bebia e fumava, enfim, só por um milagre da
natureza e da medicina poderá
ainda estar vivo, 40 anos depois.
Parece também que era baiano,
ou vagamente baiano, um sergipano talvez, ou alguém nascido
por lá. Tinha um comportamento
social exemplar, não esquecia datas de aniversário dos amigos e
suas consortes, não perdia velório
e missas de sétimo dia, em alguns
casos, até as missas de 30º dia e de
primeiro ano do passamento. Foi
com baita admiração que o vi na
minúscula fila dos cumprimentos
após a missa de um ano do falecimento de meu pai, cerimônia restrita aos parentes mais próximos,
que nem chegara a ser anunciada
nem comunicada a ninguém. Como ele soubera é um dos mistérios, que, acrescentados a outros,
levarei eu próprio para a sepultura.
Além do impecável comportamento social, tinha ele outra notável qualidade: a de orador. Orador em qualquer solenidade ou
evento, um batizado, um casamento, um aniversário, tendo sua
"finest hour" em dois momentos
específicos: à sobremesa de qualquer ágape festivo e à beira de
qualquer túmulo.
Muito me emocionei, diversas e
frequentes vezes, com seus discursos, que tinham uma fórmula genial e bastante para qualquer
oportunidade. Contam que em
Portugal havia um célebre orador
sacro que pronunciava o mesmo
sermão em louvor de qualquer
santo, mudando apenas alguns
dados biográficos e locais. Certa
vez, estava muito cansado e fora
convidado a fazer o sermão em
louvor do Divino Espírito Santo.
Distraído, tendo feito dias antes
um sermão a santo Antônio, assumiu o púlpito e começou: "O Divino Espírito Santo nasceu em
Lisboa em 1195 e morreu em Pádua, em 1231..."."
O meu orador não chegava a
tanto, mas também tinha o seu
esquema de discurso, que se baseava em três partes imutáveis,
que ele, com assombrosa nitidez,
anunciava como títulos em caixa
alta num texto que se podia ler ao
sair de sua boca: a cruz, a espada
e o livro.
Dividido o discurso em três partes básicas, não era difícil adaptá-lo às circunstâncias, fosse o homenageado um bispo, um militar ou
um escritor. Com alguma sabedoria e vasta experiência, ele descobrira que essas três categorias são
as mais sensíveis ao louvor e, por
isso, funcionavam como um sólido chassi sobre o qual ele montava sua estupenda carroceria de
elogios, sabendo que o homenageado fatalmente pertenceria a
uma das três classes esquemáticas.
A cruz, dizia ele, fora trazida
nas caravelas de Cabral e fincada
para sempre em terras brasílicas.
A espada defendera o Império na
guerra do Paraguai e a liberdade
do mundo nos campos da Itália,
brandida pelos nossos heróicos
pracinhas. E o livro, o livro às
mancheias, fora cantado pelo
poeta dos escravos, o imenso, o
oceânico Castro Alves. E por aí ia
ele, fosse um velório ou um jantar
em homenagem a alguém que fazia anos, fora nomeado ou promovido a qualquer coisa.
E, mesmo quando o homenageado não era nenhuma das três
coisas, com espantosa habilidade
ele adaptava a cruz, a espada e o
livro ao futuro da criança, no caso de um batizado, prevendo que
o recém-nascido teria sua vida
pautada pela cruz, pela espada
ou pelo livro.
Num casamento, por mais modesto que fosse, de um bancário
em início de carreira ou de um
extranumerário da Rede Ferroviária Federal, ele dava um jeito
de encaixar a cruz, a espada e o livro, garantindo que o casal teria
a perene proteção da cruz, a certeza de que a espada defenderia os
valores civilizatórios da nação e
da família e de que o livro seria a
fonte de sabedoria de seus descendentes pelos tempos afora.
Eu gostava de ouvi-lo, apreciava seu malabarismo verbal e
mental de realizar tantas e tamanhas voltas sem se afobar, dando
a impressão de que improvisava
ao mesmo tempo em que profetizava.
Tanto gostei que dele não pude
escapar na única ocasião em que
ele me prestou a homenagem de
seu verbo. Eu havia operado um
joelho arrebentado numa pelada
de futebol de praia. Passei cinco
dias numa casa de saúde e, ao receber alta, estava no quarto com
meus pais, um dos meus irmãos, a
namorada daquele tempo e os
dois médicos que haviam cuidado
de mim.
Subitamente, a porta que dava
para o corredor se abriu e ele meteu a cara numa ação investigativa, para ver se não havia se enganado de quarto. Quando teve a
certeza de que estava no lugar
adequado, percebi que não poderia evitar a catástrofe. Mesmo assim, apresentei-o com modestas
palavras aos presentes, agradecendo a visita inesperada e me
apressando a ir embora.
Ledo e ivo engano! Ele percebeu
a manobra e, mesmo que não tivesse percebido, daria na mesma,
Pediu a palavra, saudou minha
recuperação. Napoleão, ao curar
um ferimento após a batalha de
Marengo, não recebeu a mesma
louvação nem teve o seu futuro
tão exaltado.
O meu amigo só cometeu um
erro, relevado pelos presentes: disse que eu me livrara de um apêndice e me augurou uma vida saudável e proveitosa, abençoada pela cruz, protegida pela espada e aperfeiçoada pelo livro.
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