|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TEATRO/CRÍTICA
"Leitor por Horas" é imperdível
SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
O pai da moça cega avisa ao
leitor contratado: a leitura
deverá ser translúcida, pois a filha
desenvolveu uma quase "clariaudição" para descobrir subtextos
indevidos na interpretação. No
blecaute que faz a transição para a
cena seguinte, o público já experimenta a sensação de ouvir um
texto no escuro, criando assim ao
mesmo tempo uma identificação
e um distanciamento crítico.
Bastaria esse achado para tornar "Leitor por Horas" imperdível. Mas a montagem vai bem
além de uma boa idéia inicial. Primeiro, há a grande experiência e
sensibilidade do autor José Sanchis Sinistierra, que, tendo adaptado por 30 anos textos literários
para o palco, sabe escolher trechos que se multiplicam no contexto da peça, como espelhos se
refletindo.
Como uma cega ouve "O Coração das Trevas" de Joseph Conrad? A leitura de "Madame Bovary" pode induzi-la a fantasiar
eroticamente sua realidade opaca? Assim, temos direito não só ao
universo das citações, como o de
sua interpretação, e a realidade
vai se estilhaçando em vários
pontos de vista excludentes.
Com essa sofisticação à altura
de Pirandello, o espetáculo poderia ficar restrito à elite intelectual
de um público-leitor. Mas a diretora Chistiane Jatahy sabe tirar
partido da metalinguagem do espetáculo com elegância, propondo um jogo aberto com a platéia.
Nesse trapézio sem redes, os
atores devem ser irrepreensíveis,
e são. Sebastião Vasconcellos faz o
pai, um capitão de longo curso
dos mares literários, não raro
imerso em si mesmo, mas sempre
afável, mesmo quando é cruel.
Com sua vaidade confortavelmente dissimulada em seu belo
timbre de voz, Luciano Chirolli
cinzela subtextos com vigor e sutileza. Ana Beatriz Nogueira,
construindo sua cegueira com o
essencial, faz a narrativa girar em
torno do "centro oculto do ciclone sensual", como avisa a citação
do "Leopardo" de Lampedusa.
Nesse xadrez borgiano, de regras que mudam a cada rodada, a
cega instiga com a ironia cruel dos
críticos o leitor, que se defende
tornando-se seu diretor, até que o
literário inunde de implausível a
opacidade do cotidiano. Com
uma profundidade de se estabelece camada por camada, delicado e
brilhante, "Leitor por Horas" é
teatro folhado a ouro.
Leitor por Horas
Quando: sáb, às 20h; dom., às 18h; até
25/6
Onde: Sesc Paulista (av. Paulista, 119,
tel. 0/xx/11/3179-3700)
Quanto: R$ 15
Texto Anterior: Cinema: CCBB promove encontro com Walter Carvalho Próximo Texto: Televisão: Multishow aborda política em festa Índice
|