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RESENHA DA SEMANA
A literatura ou a vida
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
As três novelas reunidas
em "A Vida Privada e Outras Histórias", de Henry James
(1843-1916), são alegorias explícitas da literatura. Dão a impressão de ser a expressão direta do
pensamento do autor sobre o
seu ofício. Boa parte da graça
desses textos, no entanto, vem
da miragem que leva o leitor a
cair nessa armadilha.
As três histórias ("A Lição do
Mestre", "O Desenho do Tapete" e "A Vida Privada") permitem, pela insistência do tema,
que o leitor entenda por fim que
o que está em jogo é bem mais
complexo e ambíguo do que a
simples opinião do autor.
Em "A Vida Privada", há um
célebre escritor entre um pequeno grupo de ingleses reunidos
num hotel na Suíça. A certa altura, um dos personagens, admirador confesso, começa a desconfiar da disparidade entre a
mediocridade do que o seu ídolo
diz no convívio social e a genialidade do que escreve. A obsessão
o leva a suspeitar que o escritor
na verdade seja duas pessoas e a
tentar entrar no seu quarto
quando ele se ausenta, para flagrar o verdadeiro autor no ato
da criação.
A tendência a confundir autor
e obra, a achar inconcebível que
um autor de livros geniais seja
uma besta no convívio social, é
um lugar-comum. É o que leva
não só o admirador à sua teimosia delirante de encontrar
"aquele que realmente escreve",
mas muitos biógrafos a procurar na vida dos escritores uma
explicação direta para as suas
obras.
O equívoco da identificação
do autor com a obra -e a consequente falsa intimidade que o
leitor desenvolve com base exclusiva na leitura- pode produzir algumas felicidades, mas
em geral é responsável por grandes constrangimentos. Assim
como são imensas as chances de
quem admira uma obra se decepcionar com a pessoa do autor, também não é raro o embaraço provocado pelos escritos de
alguém a quem se admira pessoalmente.
Desse ponto de vista, a alegoria do duplo é esclarecedora. É a
cisão que torna a obra possível.
A obra literária não é a mera expressão de uma vida ou personalidade atraente. "Aquele que
realmente escreve" não pode ser
encontrado fora do livro, simplesmente porque o "verdadeiro
escritor" só tem materialidade
na própria obra. Ele é a obra.
Não é ninguém que se convide
para festas ou reuniões sociais.
Ao mesmo tempo que ironiza
a confusão entre autor e obra, a
alegoria de "A Vida Privada"
conclui com uma moral: mostra
que a literatura depende de um
certo silêncio, de abnegação e
recolhimento; que ela não está
nem em encontros sociais, nem
em academias, muito menos em
congressos ou associações de escritores.
É sabido, em contrapartida,
que o próprio James tinha uma
vida social intensa, a ponto de
ter comparecido a 140 jantares
numa única temporada, entre
1878 e 1879. Mas o que à primeira vista pode parecer contraditório entre o comportamento do
escritor e a moral do seu conto
no fundo não faz mais do que
confirmá-la: a literatura não é a
expressão direta nem da opinião
nem da vida do autor. E James
sabe brincar com isso.
Em "A Lição do Mestre", por
exemplo, a ambiguidade começa pelo título. Um grande escritor decadente aconselha um jovem estreante, seu admirador, a
deixar de lado tudo o que não
for a própria literatura, a começar pela mulher por quem o rapaz está apaixonado. De acordo
com o mestre, a literatura exige
a renúncia de tudo o que for capaz de dispersar o desejo do escritor, pois ela é o desejo que não
pode se realizar para poder
cumprir-se.
É a mesma conclusão de "A
Imagem no Tapete", em que os
personagens passam a vida tentando descobrir o segredo da
obra de um grande escritor, "vítimas de um insaciável desejo".
E não é à toa que os que o descobrem morrem. A literatura aparece como uma forma de representar a condição que mantém o
homem vivo, "vítima de um insaciável desejo". E para isso é
preciso que ela torne o segredo
apenas concebível sem nunca
revelá-lo.
É por isso também que, depois
de cumprir o que lhe aconselhava o mestre, e abdicar da mulher
que amava, o jovem admirador
já não sabe se foi traído ou salvo.
Pois se dá conta de que cometeu
um erro crasso: admirava a
obra, mas seguiu o conselho do
autor.
A Vida Privada e Outras
Novelas
The Lesson of the Master, The Figure in
the Carpet, The Private Life
Autor: Henry James
Tradutor: Onédia Célia Pereira de
Queiroz
Editora: Nova Alexandria
Quanto: R$ 23 (208 págs.)
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