São Paulo, sábado, 16 de junho de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RESENHA DA SEMANA

A literatura ou a vida

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

As três novelas reunidas em "A Vida Privada e Outras Histórias", de Henry James (1843-1916), são alegorias explícitas da literatura. Dão a impressão de ser a expressão direta do pensamento do autor sobre o seu ofício. Boa parte da graça desses textos, no entanto, vem da miragem que leva o leitor a cair nessa armadilha.
As três histórias ("A Lição do Mestre", "O Desenho do Tapete" e "A Vida Privada") permitem, pela insistência do tema, que o leitor entenda por fim que o que está em jogo é bem mais complexo e ambíguo do que a simples opinião do autor.
Em "A Vida Privada", há um célebre escritor entre um pequeno grupo de ingleses reunidos num hotel na Suíça. A certa altura, um dos personagens, admirador confesso, começa a desconfiar da disparidade entre a mediocridade do que o seu ídolo diz no convívio social e a genialidade do que escreve. A obsessão o leva a suspeitar que o escritor na verdade seja duas pessoas e a tentar entrar no seu quarto quando ele se ausenta, para flagrar o verdadeiro autor no ato da criação.
A tendência a confundir autor e obra, a achar inconcebível que um autor de livros geniais seja uma besta no convívio social, é um lugar-comum. É o que leva não só o admirador à sua teimosia delirante de encontrar "aquele que realmente escreve", mas muitos biógrafos a procurar na vida dos escritores uma explicação direta para as suas obras.
O equívoco da identificação do autor com a obra -e a consequente falsa intimidade que o leitor desenvolve com base exclusiva na leitura- pode produzir algumas felicidades, mas em geral é responsável por grandes constrangimentos. Assim como são imensas as chances de quem admira uma obra se decepcionar com a pessoa do autor, também não é raro o embaraço provocado pelos escritos de alguém a quem se admira pessoalmente.
Desse ponto de vista, a alegoria do duplo é esclarecedora. É a cisão que torna a obra possível. A obra literária não é a mera expressão de uma vida ou personalidade atraente. "Aquele que realmente escreve" não pode ser encontrado fora do livro, simplesmente porque o "verdadeiro escritor" só tem materialidade na própria obra. Ele é a obra. Não é ninguém que se convide para festas ou reuniões sociais.
Ao mesmo tempo que ironiza a confusão entre autor e obra, a alegoria de "A Vida Privada" conclui com uma moral: mostra que a literatura depende de um certo silêncio, de abnegação e recolhimento; que ela não está nem em encontros sociais, nem em academias, muito menos em congressos ou associações de escritores.
É sabido, em contrapartida, que o próprio James tinha uma vida social intensa, a ponto de ter comparecido a 140 jantares numa única temporada, entre 1878 e 1879. Mas o que à primeira vista pode parecer contraditório entre o comportamento do escritor e a moral do seu conto no fundo não faz mais do que confirmá-la: a literatura não é a expressão direta nem da opinião nem da vida do autor. E James sabe brincar com isso.
Em "A Lição do Mestre", por exemplo, a ambiguidade começa pelo título. Um grande escritor decadente aconselha um jovem estreante, seu admirador, a deixar de lado tudo o que não for a própria literatura, a começar pela mulher por quem o rapaz está apaixonado. De acordo com o mestre, a literatura exige a renúncia de tudo o que for capaz de dispersar o desejo do escritor, pois ela é o desejo que não pode se realizar para poder cumprir-se.
É a mesma conclusão de "A Imagem no Tapete", em que os personagens passam a vida tentando descobrir o segredo da obra de um grande escritor, "vítimas de um insaciável desejo". E não é à toa que os que o descobrem morrem. A literatura aparece como uma forma de representar a condição que mantém o homem vivo, "vítima de um insaciável desejo". E para isso é preciso que ela torne o segredo apenas concebível sem nunca revelá-lo.
É por isso também que, depois de cumprir o que lhe aconselhava o mestre, e abdicar da mulher que amava, o jovem admirador já não sabe se foi traído ou salvo. Pois se dá conta de que cometeu um erro crasso: admirava a obra, mas seguiu o conselho do autor.


A Vida Privada e Outras Novelas
The Lesson of the Master, The Figure in the Carpet, The Private Life
    
Autor: Henry James
Tradutor: Onédia Célia Pereira de Queiroz
Editora: Nova Alexandria
Quanto: R$ 23 (208 págs.)




Texto Anterior: "Eu e Outras Poesias": Augusto dos Anjos, o poeta da vida
Próximo Texto: Panorâmica - Encontro: Mário Chamie conversa com leitores em SP
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.