São Paulo, sábado, 16 de junho de 2007

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ANTONIO CICERO

Letra de canção e poesia


Talvez o que se deva perguntar é se uma boa letra é necessariamente um bom poema

COMO ESCREVO poemas e letras de canções, freqüentemente perguntam-me se acho que as letras de canções são poemas. A expressão "letra de canção" já indica de que modo essa questão deve ser entendida, pois a palavra "letra" remete à escrita. O que se quer saber é se a letra, separada da canção, constitui um poema escrito.
"Letra de canção é poema?" Essa formulação é inadequada. Desde que as vanguardas mostraram que não se pode determinar a priori quais são as formas lícitas para a poesia, qualquer coisa pode ser um poema. Se um poeta escreve letras soltas na página e diz que é um poema, quem provará o contrário?
Neste ponto, parece-me inevitável introduzir um juízo de valor. A verdadeira questão parece ser se uma letra de canção é um bom poema. Entretanto, mesmo esta última pergunta ainda não é suficientemente precisa, pois pode estar a indagar duas coisas distintas: 1) Se uma letra de canção é necessariamente um bom poema; e 2) Se uma letra de canção é possivelmente um bom poema.
Quanto à primeira pergunta, é evidente que deve ter uma resposta negativa. Nenhum poema é necessariamente um bom poema; nenhum texto é necessariamente um bom poema; logo, nenhuma letra é necessariamente um bom poema. Mas talvez o que se deva perguntar é se uma boa letra é necessariamente um bom poema. Ora, também a essa pergunta a resposta é negativa. Quem já não teve a experiência, em relação a uma letra de canção, de se emocionar com ela ao escutá-la cantada e depois considerá-la insípida, ao lê-la no papel, sem acompanhamento musical? Não é difícil entender a razão disso.
Um poema é um objeto autotélico, isto é, ele tem o seu fim em si próprio. Quando o julgamos bom ou ruim, estamos a considerá-lo independentemente do fato de que, além de ser um poema, ele tenha qualquer utilidade. O poema se realiza quando é lido: e ele pode ser lido em voz baixa, interna, aural.
Já uma letra de canção é heterotélica, isto é, ela não tem o seu fim em si própria. Para que a julguemos boa, é necessário e suficiente que ela contribua para que a obra lítero-musical de que faz parte seja boa. Em outras palavras, se uma letra de canção servir para fazer uma boa canção, ela é boa, ainda que seja ilegível. E a letra pode ser ilegível porque, para se estruturar, para adquirir determinado colorido, para ter os sons ou as palavras certas enfatizadas, ela depende da melodia, da harmonia, do ritmo, do tom da música à qual se encontra associada.
Mas isso, em última análise, ainda não é tudo. A letra se realiza na canção, mas a canção só se realiza plenamente quando interpretada, isto é, quando cantada e escutada. Ora, como Luiz Tatit mostra em seu belíssimo livro "O Cancionista", "no mundo dos cancionistas não importa tanto o que é dito, mas a maneira de o dizer, e a maneira é essencialmente melódica".
Será sem dúvida por isso que podemos perfeitamente apreciar cantores a cantar canções em línguas que não entendemos. E Tatit observa que, para João Gilberto, por exemplo, "o texto ideal é levemente dessemantizado, quase um pretexto para se percorrer os contornos melódicos dizendo alguma coisa (afinal, a voz, por ser voz, deve sempre dizer alguma coisa)". Assim, uma boa letra de canção não é necessariamente um bom poema.
A resposta para a segunda pergunta, por outro lado -isto é, se uma letra de canção é possivelmente um bom poema- é evidentemente positiva. Os poemas líricos da Grécia antiga e dos provençais eram letras de canções. Perderam-se as músicas que os acompanhavam, de modo que só os conhecemos na forma escrita. Ora, muitos deles são considerados grandes poemas; alguns são enumerados entre os maiores que já foram feitos. Além disso, nada impede que um bom poema, quando musicado, se torne uma boa letra de canção.
Para dizer a verdade, o que nos intriga hoje é que haja tantos grandes poemas entre as letras gregas e provençais e tão poucos entre as modernas. Entretanto, a leitura do livro "Letra Só", de Caetano Veloso -que contém tantos grandes poemas que são também letras de canções-, fez-me pensar melhor sobre essa questão. Para o punhado de poemas de Safo, por exemplo, que nos chegaram, dentre os quais meia dúzia de obras-primas, quantos milhares de letras de canções não tiveram que ser escritos e esquecidos na Grécia antiga?
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