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ANTONIO CICERO
Letra de canção e poesia
Talvez o que se deva perguntar é se uma boa letra é necessariamente um bom poema
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COMO ESCREVO poemas e letras
de canções, freqüentemente
perguntam-me se acho que as
letras de canções são poemas. A expressão "letra de canção" já indica
de que modo essa questão deve ser
entendida, pois a palavra "letra" remete à escrita. O que se quer saber é
se a letra, separada da canção, constitui um poema escrito.
"Letra de canção é poema?" Essa
formulação é inadequada. Desde
que as vanguardas mostraram que
não se pode determinar a priori
quais são as formas lícitas para a
poesia, qualquer coisa pode ser um
poema. Se um poeta escreve letras
soltas na página e diz que é um poema, quem provará o contrário?
Neste ponto, parece-me inevitável
introduzir um juízo de valor. A verdadeira questão parece ser se uma
letra de canção é um bom poema.
Entretanto, mesmo esta última pergunta ainda não é suficientemente
precisa, pois pode estar a indagar
duas coisas distintas: 1) Se uma letra
de canção é necessariamente um
bom poema; e 2) Se uma letra de
canção é possivelmente um bom
poema.
Quanto à primeira pergunta, é evidente que deve ter uma resposta negativa. Nenhum poema é necessariamente um bom poema; nenhum
texto é necessariamente um bom
poema; logo, nenhuma letra é necessariamente um bom poema. Mas
talvez o que se deva perguntar é se
uma boa letra é necessariamente
um bom poema. Ora, também a essa
pergunta a resposta é negativa.
Quem já não teve a experiência, em
relação a uma letra de canção, de se
emocionar com ela ao escutá-la cantada e depois considerá-la insípida,
ao lê-la no papel, sem acompanhamento musical? Não é difícil entender a razão disso.
Um poema é um objeto autotélico,
isto é, ele tem o seu fim em si próprio. Quando o julgamos bom ou
ruim, estamos a considerá-lo independentemente do fato de que, além
de ser um poema, ele tenha qualquer utilidade. O poema se realiza
quando é lido: e ele pode ser lido em
voz baixa, interna, aural.
Já uma letra de canção é heterotélica, isto é, ela não tem o seu fim em
si própria. Para que a julguemos boa,
é necessário e suficiente que ela contribua para que a obra lítero-musical
de que faz parte seja boa. Em outras
palavras, se uma letra de canção servir para fazer uma boa canção, ela é
boa, ainda que seja ilegível. E a letra
pode ser ilegível porque, para se estruturar, para adquirir determinado
colorido, para ter os sons ou as palavras certas enfatizadas, ela depende
da melodia, da harmonia, do ritmo,
do tom da música à qual se encontra
associada.
Mas isso, em última análise, ainda
não é tudo. A letra se realiza na canção, mas a canção só se realiza plenamente quando interpretada, isto é, quando cantada e escutada. Ora,
como Luiz Tatit mostra em seu belíssimo livro "O Cancionista", "no
mundo dos cancionistas não importa tanto o que é dito, mas a maneira
de o dizer, e a maneira é essencialmente melódica".
Será sem dúvida por isso que podemos perfeitamente apreciar cantores a cantar canções em línguas
que não entendemos. E Tatit observa que, para João Gilberto, por
exemplo, "o texto ideal é levemente
dessemantizado, quase um pretexto
para se percorrer os contornos melódicos dizendo alguma coisa (afinal, a voz, por ser voz, deve sempre
dizer alguma coisa)". Assim, uma
boa letra de canção não é necessariamente um bom poema.
A resposta para a segunda pergunta, por outro lado -isto é, se uma letra de canção é possivelmente um
bom poema- é evidentemente positiva. Os poemas líricos da Grécia
antiga e dos provençais eram letras
de canções. Perderam-se as músicas
que os acompanhavam, de modo
que só os conhecemos na forma escrita. Ora, muitos deles são considerados grandes poemas; alguns são
enumerados entre os maiores que já
foram feitos. Além disso, nada impede que um bom poema, quando musicado, se torne uma boa letra de
canção.
Para dizer a verdade, o que nos intriga hoje é que haja tantos grandes
poemas entre as letras gregas e provençais e tão poucos entre as modernas. Entretanto, a leitura do livro "Letra Só", de Caetano Veloso -que
contém tantos grandes poemas que
são também letras de canções-, fez-me pensar melhor sobre essa questão. Para o punhado de poemas de
Safo, por exemplo, que nos chegaram, dentre os quais meia dúzia de
obras-primas, quantos milhares de
letras de canções não tiveram que
ser escritos e esquecidos na Grécia
antiga?
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