São Paulo, terça-feira, 16 de junho de 2009

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

O código de Ron Howard


O diretor não conta que deturpou a história de Dan Brown para não causar a ira dos aiatolás


EXISTE UM pequeno masoquista dentro de mim. Mas não existirá em todos nós? Vozes amigas disseram-me que o último filme de Ron Howard ("Anjos e Demônios") era melhor que o antepenúltimo ("O Código Da Vinci").
Torci o nariz. Sou bicho cético. Não me deixo iludir pela última moda, sobretudo quando a última moda é adaptação de Dan Brown, um analfabeto terminal que me horroriza para lá do tolerável. Sem falar de Ron Howard "lui-même", repetidamente incapaz de dirigir um filme comestível. Mas cedi. Noite quente em Lisboa. Uma sala com ar condicionado era perspectiva tentadora. Pensava eu. Pensava mal.
Dizer que "Anjos e Demônios" é um filme talvez seja um exagero. Mais que um exagero: um insulto grotesco à arte centenária de Lubitsch, Capra ou Billy Wilder. O "filme", se merece o nome, é apenas uma coleção de postais ilustrados sobre Roma e o Vaticano, com Robert Langdon, personagem de Tom Hanks (que cabelo é aquele, meu Deus?), no papel de guia turístico.
Vemos uma estátua, uma pintura, um símbolo ou uma pedra -e Hanks começa a debitar "sabedoria" com pose ridícula de professor de colégio. No meio dos delírios de Hanks, existe uma "história". Conto rápido: morreu o papa. Os cardeais reúnem-se na capela Sistina para eleger um novo.
Paralelamente a essa história, existe outra: alguém ameaça explodir o Vaticano. "Alguém", vírgula: são os Illuminati, a seita clandestina que a igreja obscurantista ostracizou durante séculos. Os Illuminati, acrescento, são um grupo secreto que sempre dedicou especial carinho à razão, à ciência e à verdade. Galileu fazia parte da tribo. Sim, o exato Galileu que a igreja condenou por suas heresias cosmológicas.
Agora, os Illuminati estão de volta. Para se vingarem de séculos de crimes e humilhações. Tenham medo, tenham muito medo. Ou tenham tédio, tenham muito tédio. Eu tive. No inevitável "twist" narrativo do filme, descobrimos que não são os Illuminati quem procura destruir o Vaticano. O verdadeiro criminoso da história é um membro do próprio Vaticano que, na sua intolerância caricatural, usou o nome desse santo grupo para usurpar o trono de Pedro e lançar a cristandade em nova guerra contra a ciência moderna.
Felizmente, tudo termina bem. O Vaticano é salvo da destruição (no último minuto, "comme d'habitude"...) e um novo papa "progressista" promete conduzir a igreja pelos caminhos da modernidade. Não sei se o novo papa atira preservativos à multidão que o aguarda na praça de São Pedro. Saí da sala quando o filme ainda não tinha terminado.
Bastou o que bastou. O filme de Ron Howard não é apenas nulo do ponto de vista cinematográfico, o que já seria lamentável. No seu anticatolicismo infantil, Ron Howard prolonga o grande equívoco da arte contemporânea: a ideia de que a crítica ao cristianismo e à Igreja Católica é um ato de inegável e insuperável coragem. O próprio diretor, em entrevistas sobre o filme, confessou com tristeza as suas extremas dificuldades para filmar em Roma. Parece que a igreja tudo fez para impedir Howard de cumprir o seu projeto pretensamente "rebelde".
Curiosamente, Howard não confessou tudo. Não confessou, como se lê em alguma imprensa esclarecida sobre o filme, a forma como deturpou a história original de Brown para não provocar a ira dos aiatolás. No livro, o assassino principal é apresentado como um árabe muçulmano que deseja exterminar a Igreja Católica por motivos históricos, ideológicos e, obviamente, financeiros. No filme, não há árabe muçulmano para ninguém. Apenas um rapaz simpático, com ar vagamente escandinavo. A "rebeldia" de Ron Howard chega e sobra para a Igreja Católica, esse mundo de opressão que, muito simpaticamente, ladra mas não morde. Mas virar essa "rebeldia" para Meca não faz parte do código de Ron Howard.
O que não deixa de ser uma pena. Depois de ter assistido a "Anjos e Demônios" com a inevitável náusea que a coisa inspira, eu merecia uma indenização. Merecia, no mínimo, que Ron Howard dirigisse o próximo filme na Arábia Saudita, apresentando uma história igualmente "corajosa" e "rebelde" sobre os crimes e as aberrações do islã e do seu profeta. Claro que a cabeça de Ron Howard poderia não sobreviver às filmagens. Mas eu, confesso, não tenho apenas um pequeno masoquista dentro de mim. Também lá existe um pequeno sádico.

jpcoutinho@folha.com.br


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