São Paulo, quarta-feira, 16 de julho de 2003 |
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Vida e época de COETZEE
SYLVIA COLOMBO EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA Em uma África do Sul cindida pela guerra civil, um homem vaga a pé carregando consigo apenas uma mala e um pacote com as cinzas de sua mãe. Só saberemos que ele é negro já bem avançada a sua saga, mesmo assim por indicações tênues. O autor prefere explicitar outra das características físicas do protagonista, aquela que revela uma de suas poucas certezas. Michael K tem lábio leporino e não quer corrigi-lo. Não é de hoje que o escritor sul-africano J.M. Coetzee, 63, escolheu tratar as tensões sociais e raciais que marcaram a história de seu país menos sob a ótica da política, mas sim como espaço dramático em que transitam angústias e projeções humanas. Em sua visão, brancos e negros parecem ser ambos perdedores num conflito constante em que a brutalidade e a degradação humana são comuns aos dois lados. Em "Vida e Época de Michael K", livro de 1983 só agora editado aqui, Coetzee segue um homem de 31 anos, criado em instituições do Estado e tornado jardineiro da Cidade do Cabo, que se vê na obrigação de levar a mãe adoecida para se reencontrar com o lugar onde nasceu, no interior do país. A velha enferma, porém, morre, e Michael decide continuar a viagem só. Com as estradas bloqueadas pelo Exército, caminha pelo meio das fazendas, sobe às montanhas, alimenta-se de insetos e lagartos. Os limites da exaustão o levam a questionar sua existência, ao mesmo tempo em que cria para ela um código moral particular. Na primeira parte, a narrativa investiga -mas nunca invade por completo- seus pensamentos. Na segunda, a história é contada do ponto de vista de um médico que recebe Michael já reduzido quase a um saco de ossos. O romance lhe rendeu o primeiro Booker Prize (o Nobel das letras inglesas), premiação que voltaria a receber em 1999 por "Desonra". Coetzee é o único escritor a obter duas vezes a distinção. Não por acaso, os dois livros trazem uma situação comum. Em "Desonra", o professor de literatura David Lurie cai em desgraça ao vir à tona um caso que mantinha com uma aluna. Parte, então, para o interior, onde mora sua filha, numa fazenda em que vive sob constante abuso sexual e sob a brutalidade das leis sociais no campo. A viagem abre a mente de Lurie para a crua realidade, fazendo-o perceber que a única redenção possível seria aceitar a violência natural do lugar. Da mesma forma, em "Vida e Época de Michael K", vemos um homem ser destituído de sua honra, forçado a encarar o país despedaçado que até então negava-se a enxergar e tentar se reconstruir por meio de uma peregrinação pelo coração do território. O interior da África do Sul tem papel importante em ambos os romances, não por figurar como um lugar onde o homem pode retomar valores ancestrais, mas como espaço de atrito com a natureza e com sua própria essência. Coetzee possui um estilo peculiar. Excessivamente econômico com as palavras, adota um tom impessoal e sem sentimentalismos. Crítico e professor de literatura, o autor viveu na África do Sul até os anos 60, de onde partiu para os EUA e Europa. Avesso a entrevistas, aceitou responder a perguntas da Folha, desde que pudesse escolher quais e que não fossem abordados assuntos pessoais. Folha - O livro mostra o homem
diante do absurdo da guerra. Acredita que possa ajudar a discutir o
momento que vivemos hoje, o da
chamada "guerra contra o terror"? Folha - O protagonista desse livro
guarda semelhanças com o de "Desonra". Ambos perdem coisas muito importantes para a vida de um
homem, antes de encontrar redenção ao aceitar a realidade. Concorda com essa comparação? Michael
K ajudou a inspirar David Lurie? Folha - Há pouquíssimas referências ao fato de Michael K ser negro,
nenhuma até mais da metade do
romance. Por que não fez questão
de explicitá-lo? Folha - Muitos de seus críticos
gostam de evocar semelhanças entre seu estilo e o de Franz Kafka. O
fato de seu protagonista se chamar
Michael K é uma referência ao Josef
K de "O Processo", por exemplo? Folha - "Vida e Época" nos faz
pensar em grandes biografias. Por
que usou esse título? Folha - Por que escolhe iniciar alguns de seus romances a partir de
personagens que têm de enfrentar
situações extremas? Folha - Esse é o livro que lhe deu
seu primeiro Booker Prize. O que
pensa dos prêmios literários em
geral e como eles movimentam o
mercado editorial hoje? Folha - Gosta de literatura brasileira? Algum autor em particular? VIDA E ÉPOCA DE MICHAEL K. - autor: J.M. Coetzee. Tradução: José Rubens Siqueira. Editora: Companhia das Letras. Quanto: R$ 31 (211 págs.). Texto Anterior: Programação de TV Próximo Texto: Trechos Índice |
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