São Paulo, sábado, 16 de julho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

Música de câmara

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

A artista Fayga Ostrower costumava dizer que a gravura é a música de câmara das artes visuais. Podemos entender com isso que há certos tipos de obra em que existe um equilíbrio perfeito entre o gesto minimalista e sua expansão física, entre a precisão do desenho e a grande superfície da tela, entre a concisão da sonata e as massas sonoras da sinfonia (como ocorre, por exemplo, nos "Caprichos" de Goya e nos quartetos de Beethoven).
É possível aplicar esse raciocínio à literatura? Existiria uma modalidade de arte verbal em que os elementos composicionais da poesia e os procedimentos narrativos da prosa estivessem acoplados de um modo singular, a ponto de constituírem um gênero?
Evidentemente, a pergunta faz pouco sentido numa época em que as separações entre gêneros tendem a se diluir em contaminações recíprocas. Mas é possível encontrar obras que se articulam ao redor dessa condensação em que o mundo narrado se submete às coordenadas de um olhar quase abstrato. Isso vem a propósito de "A História dos Ossos", pelo fato de seu autor, Alberto Martins, ser um poeta e gravurista que lança agora um livro de prosa tão despretensioso quanto inventivo.
O volume inclui duas narrativas independentes, porém com forte nexo afetivo e estrutural. Na primeira, "O Cão no Sótão", o narrador descreve a loucura progressiva de seu irmão, após a mudança da família para São Paulo. Primeiramente, ele se isola num quarto nos fundos do quintal, onde passa as noites escrevendo sobre um tampo de porta colocado sobre dois cavaletes. Em seguida, arruma emprego num cartório e, incumbido de cuidar do arquivo morto, passa a habitar uma salinha na companhia de um "cão magricela" para quem encena trechos de um "monólogo a muitas vozes".
O texto que dá título ao livro se passa em Santos (cidade natal do autor e do protagonista), onde o mesmo narrador é obrigado a recolher os despojos do pai no cemitério, que está sendo reformado por causa da privatização do porto contíguo. Carregando a ossada paterna num embrulho, ele faz então uma peregrinação por lugares da memória, cômodos da antiga casa, canais, mangues.
Temos assim dois movimentos opostos -um ensimesmamento e uma busca de vestígios exteriores- com o fundo comum da degradação mental e social, da desestruturação dos laços de sangue e do massacre do passado coletivo. O impacto emocional dessas histórias, todavia, é controlado por uma escrita que se concentra na enumeração e na descrição de objetos e espaços.
Como o gravurista que entalha na madeira a imagem em negativo daquilo que aparecerá no papel impresso, Martins organiza a talhe seco um mundo de formas e reentrâncias, formando ora receptáculos da lembrança, ora arestas pontiagudas que reabrem suas feridas:
"Na hora da mudança, ajudei a despachar os embrulhos para dento do caminhão. Na casa, lembro que ficamos eu, a mãe, o irmão. E os vãos: os fundos das gavetas, os intervalos entre a madeira e a alvenaria, as ranhuras das tábuas no piso. Mesmo onde não havia sinal de mobília, algum fiapo de memória poderia ter caído, que nos acusaria para sempre".
A estrutura de "A História dos Ossos" remete a "Resumo de Ana", livro de Modesto Carone em que também há um enredo familiar traumático contado de dois pontos de vista narrativos diferentes, porém complementares. No presente caso, o peso da história é menos avassalador, embora esteja materializada na paisagem em decomposição de Santos, com seus subúrbios, prostitutas e indigentes.
Mas é sobretudo na microfísica da escrita, na poética do xilogravurista Alberto Martins (cujo trabalho tem uma pequena amostra nessa edição) e do autor de "Cais" (seu livro anterior), que as palavras aparecem como "cascas de coisas que eram que foram que vieram se esfarelando na ladeira das eras". Os ossos do título são, assim, o signo e a tônica dominantes no esqueleto do livro: dirigem o olhar para resquícios de existências que retornam ao inorgânico.


Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço

A História dos Ossos
    
Autor: Alberto Martins
Editora: 34
Quanto: R$ 25 (72 págs.)


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Cinema: Santos lidera lista de ingressos per capita
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.