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RODAPÉ
Música de câmara
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
A artista Fayga Ostrower
costumava dizer que a gravura é a música de câmara das
artes visuais. Podemos entender
com isso que há certos tipos de
obra em que existe um equilíbrio
perfeito entre o gesto minimalista
e sua expansão física, entre a precisão do desenho e a grande superfície da tela, entre a concisão
da sonata e as massas sonoras da
sinfonia (como ocorre, por exemplo, nos "Caprichos" de Goya e
nos quartetos de Beethoven).
É possível aplicar esse raciocínio
à literatura? Existiria uma modalidade de arte verbal em que os
elementos composicionais da
poesia e os procedimentos narrativos da prosa estivessem acoplados de um modo singular, a ponto
de constituírem um gênero?
Evidentemente, a pergunta faz
pouco sentido numa época em
que as separações entre gêneros
tendem a se diluir em contaminações recíprocas. Mas é possível encontrar obras que se articulam ao
redor dessa condensação em que
o mundo narrado se submete às
coordenadas de um olhar quase
abstrato. Isso vem a propósito de
"A História dos Ossos", pelo fato
de seu autor, Alberto Martins, ser
um poeta e gravurista que lança
agora um livro de prosa tão despretensioso quanto inventivo.
O volume inclui duas narrativas independentes, porém com
forte nexo afetivo e estrutural. Na
primeira, "O Cão no Sótão", o
narrador descreve a loucura progressiva de seu irmão, após a mudança da família para São Paulo.
Primeiramente, ele se isola num
quarto nos fundos do quintal, onde passa as noites escrevendo sobre um tampo de porta colocado
sobre dois cavaletes. Em seguida,
arruma emprego num cartório e,
incumbido de cuidar do arquivo
morto, passa a habitar uma salinha na companhia de um "cão
magricela" para quem encena
trechos de um "monólogo a muitas vozes".
O texto que dá título ao livro se
passa em Santos (cidade natal do
autor e do protagonista), onde o
mesmo narrador é obrigado a recolher os despojos do pai no cemitério, que está sendo reformado
por causa da privatização do porto contíguo. Carregando a ossada
paterna num embrulho, ele faz
então uma peregrinação por lugares da memória, cômodos da
antiga casa, canais, mangues.
Temos assim dois movimentos
opostos -um ensimesmamento e
uma busca de vestígios exteriores- com o fundo comum da degradação mental e social, da desestruturação dos laços de sangue
e do massacre do passado coletivo. O impacto emocional dessas
histórias, todavia, é controlado
por uma escrita que se concentra
na enumeração e na descrição de
objetos e espaços.
Como o gravurista que entalha
na madeira a imagem em negativo daquilo que aparecerá no papel impresso, Martins organiza a
talhe seco um mundo de formas e
reentrâncias, formando ora receptáculos da lembrança, ora
arestas pontiagudas que reabrem
suas feridas:
"Na hora da mudança, ajudei a
despachar os embrulhos para
dento do caminhão. Na casa,
lembro que ficamos eu, a mãe, o
irmão. E os vãos: os fundos das
gavetas, os intervalos entre a madeira e a alvenaria, as ranhuras
das tábuas no piso. Mesmo onde
não havia sinal de mobília, algum fiapo de memória poderia
ter caído, que nos acusaria para
sempre".
A estrutura de "A História dos
Ossos" remete a "Resumo de
Ana", livro de Modesto Carone
em que também há um enredo familiar traumático contado de
dois pontos de vista narrativos diferentes, porém complementares.
No presente caso, o peso da história é menos avassalador, embora
esteja materializada na paisagem
em decomposição de Santos, com
seus subúrbios, prostitutas e indigentes.
Mas é sobretudo na microfísica
da escrita, na poética do xilogravurista Alberto Martins (cujo trabalho tem uma pequena amostra
nessa edição) e do autor de "Cais"
(seu livro anterior), que as palavras aparecem como "cascas de
coisas que eram que foram que
vieram se esfarelando na ladeira
das eras". Os ossos do título são,
assim, o signo e a tônica dominantes no esqueleto do livro: dirigem o olhar para resquícios de
existências que retornam ao inorgânico.
Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço
A História dos Ossos
Autor: Alberto Martins
Editora: 34
Quanto: R$ 25 (72 págs.)
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