São Paulo, Sexta-feira, 16 de Julho de 1999
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CINEMA "MIFUNE"
Filme enfrenta o mundo das aparências

Divulgação
Cena de "Mifune", dirigido por Soren Kragh-Jacobsen, terceiro filme do Dogma 95, conjunto de normas rígidas que prega uma volta ao cinema mais simples


INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Enquanto a Europa agoniza, os rapazes do Dogma 95 vão muito bem, obrigado. E, nem bem foi lançado "Os Idiotas", de Lars von Trier, entra este atrevido "Mifune", de Soren Kragh-Jacobsen.
Por que se pode dizer que o Dogma dá lições ao mundo cinematográfico fora dos EUA?
Em primeiro lugar, por despir a Europa de seu pesado fardo cultural, que a leva a, de tempos em tempos, brandir a "qualidade" e a "arte" como formas de combate ao cinema dominante, e que na verdade a soterram.
Em segundo, por reinventarem uma vanguarda técnica, sim, já que ao menos um de seus preceitos (uso da luz natural) supõe o aproveitamento máximo da sensibilidade dos negativos atuais (para não falar da reintrodução da câmera na mão, com o aproveitamento dos equipamentos leves, como já se fez um dia no Brasil).
Em terceiro, por terem idéias. Idéias que conseguem ser ao mesmo tempo vinculadas à tradição (tradição de Carl Th. Dreyer, para ficar na Dinamarca, de onde vem "Mifune") e perfeitamente atuais.
Daí não ser espantoso que "Mifune" volte, ao menos em parte, a uma temática já abordada em "Festa de Família" (a família) e traga como um dos personagens centrais um idiota, Rud (Jesper Asholt).
No mais, o título diz respeito a Toshiro Mifune, em particular ao papel que desempenhou em "Os Sete Samurais", de Akira Kurosawa -onde fazia o sétimo samurai, o idiota.
A intriga, aqui, tem por centro Kresten (Anders W. Berthelsen), jovem yuppie de Copenhague, que no dia do casamento com Claire, a filha do patrão, é avisado da morte do pai.
Kresten deve retirar-se para a propriedade familiar -uma fazendola deteriorada- e, sobretudo, confrontar-se com um passado que omitia de si mesmo e de seus próximos -e que inclui o suicídio da mãe e a existência do irmão retardado.
Kresten procura resolver os problemas o mais rápido possível, providenciando o enterro e contratando uma governanta para o irmão.
A governanta que se apresenta, no entanto, não é bem uma governanta. Liva (Iben Hjejle) é na verdade uma bela prostituta que, por conta de assustadores telefonemas anônimos que vem recebendo, decide mudar de vida e aceita o emprego de governanta.
Em resumidas contas, para que o mundo de aparências em que vive Kresten vire de cabeça para baixo falta muito pouco: 1) a chegada inesperada de Claire à fazendola, onde, ao encontrar Kresten com Liva, julga as coisas pela aparência, ou seja, erradamente; 2) a entrada em cena do jovem irmão de Liva, que repudia a irmã por ser prostituta.
Desde então, estamos às voltas com um grupo de quatro deslocados: o ex-yuppie e o retardado, a prostituta e o irmão agressivo. Dois grupos familiares que funcionam como espelhos, portanto uma dupla aparência que tende a quebrar o primado das aparências.
No cinema de Dreyer existe quase sempre esse tipo de conflito entre aparência e verdade, e Kragh-Jacobsen parece ser, entre os diretores do Dogma, o mais próximo dessa herança.
Como em Dreyer, aqui o conflito não se resolve pela dissolução da aparência em favor da verdade. Antes, uma tende a ser absorvida pela outra, numa espécie de fusão em que o desencanto com a existência social é transcendido, como se o homem social cedesse lugar a um homem ideal.
Mesmo o quê convencional da trama amorosa que se desenvolve ao longo de "Mifune" parece ser uma fraqueza menor num filme que consegue dispor magnificamente suas peças e que revela, na pessoa de Iben Hjejle, sua primeira musa (algo inevitável a todo movimento que se preze).
Mais do que isso, no entanto, o que chama a atenção em "Mifune", como nos demais trabalhos do Dogma, é a contagiante alegria de filmar. O cinema aparece renovado, surpreendente, a cada um de seus trabalhos.
Como quando filmam Abbas Kiarostami, ou Manoel de Oliveira, ou Clint Eastwood, ou David Cronenberg, ou Eric Rohmer e mais alguns outros, "Mifune" deixa a restauradora sensação de que o cinema ainda tem algo a mostrar. Diante deste filme não pensamos em arte (nem em indústria), mas em um mundo que é, de cujas aparências ainda existe algo a ser extraído e visto.


Avaliação:     


Filme: Mifune Produção: Dinamarca, 1999 Direção: Soren Kragh-Jacobsen Com: Anders W. Berthelsen, Sofie Grabol, Jesper Asholt
Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco 1


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