São Paulo, segunda-feira, 16 de agosto de 2004

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MÚSICA

Cantor e ministro da Cultura apresentou "Eletracústico", base de seu próximo disco, no final de semana, em SP

Gil músico faz política ao falar da diáspora negra

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Diáspora negra. Sob esse código Gilberto Gil explicita no novo show "Eletracústico" a transformação por que passa desde que deixou de ser só um dos artistas nucleares da música brasileira para se assumir, também, ministro da Cultura de seu país.
Ao introduzir "La Lune de Gorée" (97), comenta a dispersão dos africanos pelo mundo, nos remos da escravidão. Canta na língua do opressor, o francês colonizador da ilha senegalesa de Gorée. Triste até doer, exala banzo africano ao som do banjo eletracústico do projeto minimalista de ministro peregrino.
O show rearranja e dá conseqüência a tudo que Gil já cantou de político na vida, sinal de que a vida federal costura um novo homem dentro do velho tropicalista. Porto de saída, "La Lune" deságua no porto de chegada "Three Little Birds" (Bob Marley, 77), ninho jamaicano em que a diáspora veio tomar o nome de reggae.
Gilberto interpõe à letra gritos por "Preta Maria" (e por Xangô), em honra emocionada à filha presente na primeira fila. "Don't worry, minha nega", proclama, na língua da babel. Então voa a "Asa Branca" (47), banzo convertido em baião, cangaço, faroeste norte-americano. O pai-pajé pernambucano Luiz Gonzaga sobe mundo, sertanejo, forte, tristonho. É costura geopolítica, ferro e forja de arte e ampla atuação.
A tática alinhava o espetáculo, linha no linho. Começa com uma bela "Refavela" (77) eletrônica, o hoje ministro lembrando "o salto que o preto pobre tenta dar". O rock americano-inglês-baiano "Chuck Berry Fields Forever" (76) é quebrado por "Cambalache", tango argentino antigo em que Gil, homem de governo, discorre sobre impostores e ladrões. Quebra da quebra, acontece "A Rita" (66), samba do anitropicalista Chico Buarque, o Lula do Gil. Então pede passagem "Mãe Solteira" (54), narrativa trágica de Wilson Batista e Jorge de Castro, a diáspora escalando o morro carioca e tomando o nome de samba.
Ouve-se o ministro reclamar da "usura dessa gente" ("Barracos", 85), confessar que tem que "lamber o chão dos palácios" ("Se Eu Quiser Falar com Deus", 81), atacar fundamentalismos evangélicos ("Guerra Santa", 97). Na mítica "Soy Loco por Ti, América" (68), canção para Che Guevara, o telão ostenta, em português, os dizeres "morra, Bush, morra". A provocação transborda, do artista para o próprio governo brasileiro. O tempo está quente. O cantor, rouco. O ministro está sob fogo conservador, fogo amigo. Cidadão em jornada dupla, Gil Gil alegoriza a dupla face, a convergência, o inesperado, a tropicália no poder à esquerda do governo "de esquerda". O preto no branco, um tuareg, homem negro nômade em busca da plena liberdade.


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