São Paulo, terça-feira, 16 de agosto de 2011

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MINHA HISTÓRIA ANDREW ZINGG, 21

Esqueceram de mim

(...)David influenciou o pensamento artístico e foi mentor de muitas pessoas (...) É estranho observar meu avô como espécie de pai para muita gente, mas, ao mesmo tempo, completamente ausente da própria família(...)

RESUMO O americano David Drew Zingg (1923-2000) foi um dos grandes fotógrafos de sua geração. Trabalhou para algumas das principais publicações dos EUA e do Brasil, inclusive para esta Folha. O que poucos sabiam é que David trocou Nova York pelo Rio em 1964 sem avisar a própria família (esposa e três filhos). Seu neto, Andrew, de 21, decidiu investigar sua trajetória e transformá-la em trabalho de monografia e em livro.

(...) Depoimento a
MORRIS KACHANI
DE SÃO PAULO

Um dia, meu avô saiu de casa e nunca mais voltou. Deixou a mulher e três filhos (de 6, 8 e 12 anos), e só reapareceu vinte anos depois. Só o vi uma vez, quando tinha três anos. A família conta que estava casado com minha avó havia 14 anos quando desapareceu sem deixar nenhuma explicação. Claro que foi um choque. Largou uma carreira bem-sucedida como fotógrafo de revistas como "Life" e "Look", e aterrissou em Ipanema em 64. Divorciou-se de minha avó quatro anos depois. Mesmo morando no Brasil, nos primeiros anos chegou a ir a Nova York algumas vezes, mas não visitou os filhos nem mandou dinheiro. Minha avó acabou indo morar novamente com os pais, e casou-se três anos depois com um corretor imobiliário -uma pessoa muito mais segura e presente. No Brasil, David também fez um sucesso imenso, e morou aqui até morrer. Fotografou João Gilberto e Stan Getz. Fez as capas de discos de Gil e Caetano nos tempos áureos da Tropicália. Jorge Amado. Juscelino Kubitschek - imaginem, fotografou-o de terno e meias sociais, sem o sapato. Leila Diniz grávida. Gil e Caetano chegaram a morar com ele quando tinham 20 anos. Pelo que me disseram, David influenciou o pensamento artístico e foi mentor de muitas pessoas. É estranho observar meu avô como espécie de pai para muita gente mas, ao mesmo tempo, completamente ausente da própria família. Uma das coisas que mais me impressionam é a quantidade de amigos que fez no Brasil. Ele era muito charmoso, e grande contador de histórias. Mas a maioria das relações que construiu eram superficiais. De todas as pessoas que já entrevistei, e foram mais de 50, notei que com poucas cultivou amizades mais íntimas. David só foi reaparecer por meio de um telegrama, no dia do casamento do meu pai com minha mãe, em 1983. Foi um escândalo - ele havia causado muita dor e raiva. Depois nos visitou. Contava muitas histórias, mas não dizia porque havia ido embora. E não falava com os filhos da perspectiva de um pai. Mais parecia um amigo. Os filhos ficaram contrariados. Não tem como recuperar uma relação com um pai que ficou tanto tempo fora. Hoje, enxergo as conexões entre meu avô e seus filhos. David foi artista e se interessava por música e tecnologia. E um dos meus tios é dono de uma loja de discos, o outro é estrela de rock. Meu pai, executivo em informática. David tinha um jeito americano, mas as pessoas dizem que foi o carioca perfeito, mais brasileiro que os brasileiros. Sempre foi e será um mistério para minha família e para seus amigos no Brasil. Havia muitas lendas. Ninguém sabia onde terminava a realidade e começava a fantasia, e isso eu pretendo investigar. Por exemplo, a história de que foi contratado para fazer uma publicidade da Volkswagen. Conta-se que recebeu o carro com duas modelos e desapareceu! David dizia ter entrevistado Che Guevara e ser amigo de John Kennedy. Tinha fotos para comprovar. Hoje em dia, com nossas próprias vidas mais estabelecidas, temos todos sentimentos ambíguos. Admiramos suas realizações, mas é como se fosse uma ovelha negra. Seus motivos eu desconheço, mas esta não foi a única vez que abandonou as coisas. Quando se mudou do Rio para São Paulo, no final dos 70, ele tampouco avisou os amigos cariocas, e todas relações se cortaram repentinamente. David fazia parte da paisagem mas as emoções pareciam não importar muito. Em outro aspecto, foi uma pessoa muito sensível.

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