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LIVRO
Relato autobiográfico de etnólogo e filósofo malinês descreve a trajetória de mestre da transmissão oral do continente
Hampâté Bâ leva oralidade africana ao papel
PAULO DANIEL FARAH
ESPECIAL PARA A FOLHA
Na África, cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima.
A frase, do malinês Amadou
Hampâté Bâ, expressa a importância da transmissão oral no
continente e a sensação de ouvir
um sábio africano relatar suas experiências: é como se vários livros
se abrissem, com uma profusão
de detalhes, para dar voz às histórias e às tradições locais.
"Desde a infância, éramos treinados a observar, olhar e escutar
com tanta atenção que todo acontecimento se inscrevia em nossa
memória como cera virgem", diz
o etnólogo, filósofo e historiador
em "Amkoullel, o Menino Fula".
Um dos maiores pensadores da
África no século 20, Hampâté Bâ
integra a primeira geração do Mali com educação ocidental. Seu
vínculo com a tradição oral do
povo fula (nação de pastores nômades que conduz seu rebanho
pela África savânica) o levou a
buscar o reconhecimento da oralidade africana como fonte legítima de conhecimento histórico.
Hampâté Bâ (1900-91) participou da elaboração dos primeiros
estudos que usam as fontes orais
de maneira sistemática, como em
"História Geral da África", publicada pela Unesco em 1980. Se escritos como esse e outros de caráter sociológico e filosófico são
mais conhecidos, o relato autobiográfico tem o mérito de revelar
a trajetória desse mestre da transmissão oral e comprovar a força
da "oralidade deitada no papel"
(nas palavras do autor).
"O extraordinário é que ele faz a
palavra por escrito. Em momentos do livro, tenho a impressão de
escutar um mestre da palavra. E
ele era um mestre da palavra",
afirma o professor Fábio Leite, do
Centro de Estudos Africanos da
USP. "A obra aborda a realidade
das sociedades africanas a partir
de uma visão interna, que vai de
dentro para fora dos fenômenos e
revela a África-sujeito, a África da
identidade profunda, originária,
mal conhecida, portadora de propostas em valores diferenciais."
Nascido em 1900 em Bandiagara, no atual Mali, Hampâté Bâ começou a viajar "com apenas 41
dias de presença neste mundo" e
logo entrou em contato com fulas,
bambaras, dogons e hauçás, entre
outras comunidades étnicas.
O rei Tidjani Tall, fundador de
Bandiagara, mandara dizimar todos os membros do sexo masculino da família de seu pai, que sobreviveu ao massacre. À mãe, empreendedora e de caráter forte,
chamavam de "mulher de calças".
Os pais naturais, o pai espiritual
(o mestre sufi Tierno Bokar) e o
padrasto lhe ensinaram cedo as
regras de honra e conduta.
Hampâté Bâ examina a "morte"
da primeira infância, o papel das
associações de jovens na formação da personalidade africana e a
relação com os brancos-brancos
(os europeus) e os brancos-negros (os africanos europeizados).
O autor conta que, quando pequeno, tocou a mão de um "filho
do fogo" (um francês) e descobriu
que ele era "uma brasa que não
queima". Sem perífrases, descreve uma expedição ao lixo dos europeus para confirmar se seus excrementos eram negros -como
diziam os rumores- e, mais tarde, o envio à "escola dos brancos",
"considerada pela grande maioria
dos muçulmanos como o caminho mais rápido para o inferno!".
A descrição de uma cerimônia
de circuncisão, precedida de uma
grande festa que vai do pôr-do-sol
ao amanhecer, recebe descrição
minuciosa. Após as arengas destinadas a estimular a coragem, ao
pé de duas acácias, colocavam-se
pedaços de noz-de-cola na boca
dos meninos, entre os molares,
para medir sua coragem. Após a
retirada do prepúcio, "que retém
prisioneira a maioridade", a marca dos dentes, se ligeira, confirmava a bravura do circunciso.
Hampâté Ba expõe ainda a fragilidade da civilização da oralidade que tanto defendeu. "Uma das
maiores consequências da guerra
de 1914, pouco conhecida, foi provocar a primeira ruptura na transmissão oral dos conhecimentos
tradicionais." No livro, ouve-se o
timbre de sua voz e o murmúrio
de um mundo ameaçado.
Amkoullel, o Menino Fula
Autor: Amadou Hampâté Bâ
Editora: Casa das Áfricas/Palas Athena
Quanto: R$ 48 (372 págs.)
Paulo Daniel Farah é professor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP
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