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CONTARDO CALLIGARIS
"Cama de Gato"
"Cama de Gato", de Alexandre Stockler, estréia
amanhã em São Paulo, Rio e Brasília. Espero que chegue logo ao
resto do país. Assisti ao filme no
sábado à noite, numa pré-estréia,
e desde então ele cresce na lembrança.
Conselho a adolescentes, pais,
educadores e outros interessados
na adolescência: não percam.
O filme chega com duas reputações.
A primeira é a de ser escabroso.
Bom, se a visão de dois pintos e
um momento de sexo oral forem
incômodos para você, feche os
olhos e agüente firme: o resto
compensará seu esforço.
A segunda é a de ser uma versão
brasileira e pobre de "Kids" (filme
de Larry Clark, de 1995). Ora,
"Cama de Gato" tem uma qualidade moral decididamente superior à do filme de Clark. Lembra
de "Kids"? A gente saía com uma
sensação contraditória: o filme
inspirava um tipo de horror pela
vida violenta e vazia dos adolescentes retratados, mas também
conferia à adolescência sem rumo
dos protagonistas uma dimensão
inevitavelmente glamourosa. Era
difícil ser adolescente, ver "Kids"
e não querer para si os espasmos
desesperados dos "teens" de Washington Square.
Alguns dirão que esse é o efeito
sedutor da pátina hollywoodiana. "Cama de Gato" não produziria esse efeito graças à sua filmagem áspera, em vídeo (filmagem,
aliás, que eu achei particularmente feliz). E graças a uma
montagem que não deixa o tempo de sonhar com identificações
possíveis, pois a narração é entrecortada por rápidas entrevistas
de adolescentes "reais" ou pela
aparição dos três personagens assistindo a seu próprio filme num
cinema. De fato, "Cama de Gato"
é estilisticamente mais próximo
de "Bruxa de Blair" do que de
"Kids". Mas não são apenas o
tom de documentário e o distanciamento "à la Brecht" que fazem
a diferença.
Os três amigos do filme de Stockler são muito mais complexos
que os adolescentes de "Kids". Por
isso eles são mais próximos dos
adolescentes de nossa classe média urbana. Como diz um dos
protagonistas, eles são, socialmente, pobres demais para serem
ricos e ricos demais para serem
pobres. São estudiosos o suficiente
para passar em seus vestibulares e
decididos a conquistar com diligência um lugar ensolarado para
suas vidas adultas. Preocupam-se
com as injustiças do mundo no
qual vivem. E sua soltura na hora
da balada não impede que eles sejam "bons" filhos, que respeitam
pais e mães.
É essa "normalidade" que torna
escandalosa a outra face dos adolescentes "médios" de "Cama de
Gato" -escandalosa não pela licenciosidade (a gente não vai se
indignar com uma transa, quatro
beijos de língua, um baseado ou
mesmo uma linha de cocaína no
banheiro), mas pelo conflito trágico que exaspera os protagonistas e os leva ao pior.
Mesmo assim, a tragédia e o
conflito poderiam conferir às
aventuras dos três amigos uma
espécie de grandeza épica "invejável". A inquietude famélica de
suas noites poderia ser glamourosa como as aventuras dos "Kids".
Ora, "Cama de Gato" evita essa
armadilha pela sua força cômica.
Assisti ao filme numa sessão da
meia-noite. Ao nosso lado estavam sentados três adolescentes,
talvez um pouco "fumados": sua
hilaridade contagiante era a prova de que o filme os forçava a se
enxergar de uma maneira que
devia ser, ao mesmo tempo, certeira e dificilmente tragável. Ou
seja, o filme, aparentemente, oferecia-lhes uma imagem na qual
se reconheciam, mas com a qual
não devia ser agradável identificar-se.
Para não contar o filme, direi
apenas que, juntando várias cenas, saí presenteado por uma extraordinária imagem da adolescência. E vai levar um bom tempo
para que eu encontre uma melhor.
A imagem é esta: três jovens
amigos, errando de carro na noite, fumam raivosamente seus cigarros, talvez por medo de se
acalmar; são licenciosos na fala e
nos atos, mas prontos a escarnecer a prostituta ou o travesti que
lhes fala de um desejo com o qual,
de fato, não sabem bem como lidar; metralham considerações
pernósticas sobre as mudanças
das quais o mundo precisa, mas
estão prontos a agredir o miserável, talvez por medo de se parecer
com ele; enfim, carregam dois
presuntos com os quais não sabem o que fazer. Um é, classicamente, o corpo materno, do qual é
complicado se separar; o outro é o
corpo de alguém que poderia ser
uma companheira se, para os
adolescentes, na ingrata tarefa de
definir sua identidade, o grupo de
amigos não fosse sempre mais importante do que as difíceis negociações de qualquer história de
amor.
Também não me esquecerei tão
cedo da imagem dos três amigos,
perdidos no lixão como personagens de Beckett à espera de um
Godot que não chega e que certamente não é o pai; pois os pais, pelo que é de encontrar o norte na
hora do vamos ver, talvez sejam
tão perdidos quanto seus filhos
adolescentes.
Na mesma noite em que assisti
a "Cama de Gato", vi (também
imperdível) "Redentor", de Cláudio Torres, que, como Stockler,
propõe seu primeiro longa. Os
dois filmes têm um traço em comum: em ambos, o efeito cômico
não é fruto de uma caricatura,
não é efeito de nenhuma simplificação grotesca. Admiravelmente,
em ambos os filmes, o cômico revela a diabólica complicação do
mundo. Viva o cinema brasileiro.
ccalligari@uol.com.br
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