São Paulo, sábado, 16 de setembro de 2006

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DRAUZIO VARELLA

Um vulto de mulher

"O sorriso daquela moça ilumina a quadra toda", observou Sombra, ao lado de Mão-de-Seda

DR. NILO havia vivido dias de glória na época da construção das grandes avenidas de São Paulo.
Conhecedor dos escaninhos que os processos percorriam na burocracia oficial, fizera bons negócios com a compra de imóveis em processo de desapropriação.
Eram cartas marcadas: de posse da escritura que lhe conferia a propriedade do imóvel, pedia revisão judicial da quantia oferecida pela prefeitura.
Em conluio com os peritos indicados, conseguia duplicar e, às vezes, triplicar o valor das avaliações iniciais. Depois, com ajuda das boas amizades, acelerava os trâmites legais para o recebimento.
Embora beneficiário do ramo da advocacia que lhe permitiu manter duas ex-mulheres, quatro filhos e a esposa atual, 20 anos mais nova, dr. Nilo não parecia demonstrar apreço pela palavra-fonte de seu bem-estar: jamais pronunciava o segundo erre da palavra "desapropriação".
Conforme combinado, naquela noite, ele passou para pegar Agenor na porta da Regional da Sé.
O velho amigo esperava junto ao meio-fio, de jaquetão, calça risca-de-giz e o bigodinho tingido de preto. Entrou no carro com o chapéu de aba curta mal equilibrado no topo da cabeça:
-Salve, doutor, firmeza? Desculpe, mas tomei a liberdade convidar o Velho Pinga, carcereiro da Penitenciária do Estado há 30 anos, homem que já viu na vida mais acontecimentos do que nós dois juntos.
Em frente à penitenciária, perceberam que o Velho Pinga também tomara a liberdade de convidar o amigo que se postava sorridente a seu lado: Sombra, um negro do tamanho de um guarda-roupa de casal, que havia construído fama de disciplinador pouco ortodoxo nos plantões noturnos do antigo presídio do Hipódromo.
O carro seguiu com o advogado na direção. Para dar ênfase à história que começou a contar, ele gesticulava em movimentos amplos e virava a cabeça para avaliar a reação dos espectadores.
Nessas ocasiões, Agenor agarrava o volante desgovernado, medida que só servia para dar mais liberdade à gesticulação do motorista.
Agenor contou que no domingo anterior tinha ido a um churrasco na chácara do bicheiro Mão-de-Seda, presidente da escola de samba de cujo ensaio os quatro estavam a caminho para assistir.
Confessava-se maravilhado com a fartura; tinha de tudo, até costela de javali, mas o que impressão mais forte lhe causara havia sido um vinho de mexerica, reserva especial de uma vinícola de São Roque; gastou algum tempo na descrição das nuances gustativas daquele néctar adocicado.
Velho Pinga, por sua vez, tinha passado o fim de semana em companhia do irmão mais velho, solteirão como ele, na construção de um rancho nas cercanias de Mongaguá, a cinco quilômetros da praia. De sexta a domingo, enquanto levantaram as paredes de dois quartos, beberam um garrafão de pinga.
Disse que passavam a manhã inteira sem colocar uma gota de álcool na boca, mas, quando chegava perto do meio dia, um diabinho dentro deles cutucava com o tridente: "Toma uma, tá na hora!"
Sombra fez as contas:
-Tá louco, meu! Um garrafão de cinco litros dá mais de um litro e meio por dia.
Agenor justificou, incontinente:
-Mas era eu e o meu irmão.
Horas mais tarde, estavam sentados na tribuna de honra da quadra ao lado de Mão-de-Seda, vestido com um blusão de couro que mal disfarçava a arma no cinto e adornado com cinco cordões de ouro, quando entraram as passistas.
Entre elas, uma menina de oito anos, que não fazia má figura sambando entre as mais velhas, e uma mulata de vestido solto, que flutuava de sandália de salto na frente da bateria.
-O sorriso daquela moça ilumina a quadra toda- observou Sombra, ao lado de Mão-de-Seda.
O bicheiro sorriu:
- Era mulher de um inimigo. Hoje vive a meu lado com o filho de dois anos que me chama de pai.
Três dias mais tarde, Mão-de-Seda foi metralhado ao sair do escritório, com um de seus seguranças.
Quando os quatro amigos se encontraram na semana seguinte, não falaram de outro assunto até o Velho Pinga pôr um fim na conversa:
-Em tragédia de homem há sempre um vulto de mulher.


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