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DRAUZIO VARELLA
Um vulto de mulher
"O sorriso daquela moça ilumina a quadra toda", observou Sombra, ao lado de Mão-de-Seda
DR. NILO havia vivido dias de
glória na época da construção das grandes avenidas de
São Paulo.
Conhecedor dos escaninhos que
os processos percorriam na burocracia oficial, fizera bons negócios
com a compra de imóveis em processo de desapropriação.
Eram cartas marcadas: de posse
da escritura que lhe conferia a propriedade do imóvel, pedia revisão
judicial da quantia oferecida pela
prefeitura.
Em conluio com os peritos indicados, conseguia duplicar e, às vezes,
triplicar o valor das avaliações iniciais. Depois, com ajuda das boas
amizades, acelerava os trâmites legais para o recebimento.
Embora beneficiário do ramo da
advocacia que lhe permitiu manter
duas ex-mulheres, quatro filhos e a
esposa atual, 20 anos mais nova, dr.
Nilo não parecia demonstrar apreço
pela palavra-fonte de seu bem-estar:
jamais pronunciava o segundo erre
da palavra "desapropriação".
Conforme combinado, naquela
noite, ele passou para pegar Agenor
na porta da Regional da Sé.
O velho amigo esperava junto ao
meio-fio, de jaquetão, calça risca-de-giz e o bigodinho tingido de preto.
Entrou no carro com o chapéu de
aba curta mal equilibrado no topo da
cabeça:
-Salve, doutor, firmeza? Desculpe, mas tomei a liberdade convidar o
Velho Pinga, carcereiro da Penitenciária do Estado há 30 anos, homem
que já viu na vida mais acontecimentos do que nós dois juntos.
Em frente à penitenciária, perceberam que o Velho Pinga também
tomara a liberdade de convidar o
amigo que se postava sorridente a
seu lado: Sombra, um negro do tamanho de um guarda-roupa de casal, que havia construído fama de
disciplinador pouco ortodoxo nos
plantões noturnos do antigo presídio do Hipódromo.
O carro seguiu com o advogado na
direção. Para dar ênfase à história
que começou a contar, ele gesticulava em movimentos amplos e virava a
cabeça para avaliar a reação dos espectadores.
Nessas ocasiões, Agenor agarrava
o volante desgovernado, medida que
só servia para dar mais liberdade à
gesticulação do motorista.
Agenor contou que no domingo
anterior tinha ido a um churrasco na
chácara do bicheiro Mão-de-Seda,
presidente da escola de samba de
cujo ensaio os quatro estavam a caminho para assistir.
Confessava-se maravilhado com a
fartura; tinha de tudo, até costela de
javali, mas o que impressão mais
forte lhe causara havia sido um vinho de mexerica, reserva especial de
uma vinícola de São Roque; gastou
algum tempo na descrição das nuances gustativas daquele néctar adocicado.
Velho Pinga, por sua vez, tinha
passado o fim de semana em companhia do irmão mais velho, solteirão
como ele, na construção de um rancho nas cercanias de Mongaguá, a
cinco quilômetros da praia. De sexta
a domingo, enquanto levantaram as
paredes de dois quartos, beberam
um garrafão de pinga.
Disse que passavam a manhã inteira sem colocar uma gota de álcool
na boca, mas, quando chegava perto
do meio dia, um diabinho dentro deles cutucava com o tridente: "Toma
uma, tá na hora!"
Sombra fez as contas:
-Tá louco, meu! Um garrafão de
cinco litros dá mais de um litro e
meio por dia.
Agenor justificou, incontinente:
-Mas era eu e o meu irmão.
Horas mais tarde, estavam sentados na tribuna de honra da quadra
ao lado de Mão-de-Seda, vestido
com um blusão de couro que mal
disfarçava a arma no cinto e adornado com cinco cordões de ouro, quando entraram as passistas.
Entre elas, uma menina de oito
anos, que não fazia má figura sambando entre as mais velhas, e uma
mulata de vestido solto, que flutuava
de sandália de salto na frente da bateria.
-O sorriso daquela moça ilumina
a quadra toda- observou Sombra,
ao lado de Mão-de-Seda.
O bicheiro sorriu:
- Era mulher de um inimigo. Hoje vive a meu lado com o filho de dois
anos que me chama de pai.
Três dias mais tarde, Mão-de-Seda foi metralhado ao sair do escritório, com um de seus seguranças.
Quando os quatro amigos se encontraram na semana seguinte, não
falaram de outro assunto até o Velho
Pinga pôr um fim na conversa:
-Em tragédia de homem há sempre um vulto de mulher.
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