São Paulo, quarta, 16 de setembro de 1998

Texto Anterior | Índice

Afinal de contas, quem é o culpado da crise?

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Não me sinto à vontade para comentar a crise econômica, os riscos de ataque especulativo, a necessidade de desvalorização do Real ou os erros do governo.
Muitos comentaristas podem dizer, diante da catástrofe iminente: "Bem que eu avisei...".
Claro, muitas medidas deveriam ter sido tomadas. A reforma tributária não foi feita. Energias imensas se consumiram na emenda da reeleição.
Parece-me claro, contudo, que, se as famosas "medidas" não "foram tomadas", é porque também implicavam custos, e o que ocorre é menos uma inércia criminosa do governo e mais uma avaliação equivocada (irresponsável?) dos perigos, riscos e anti-riscos envolvidos na atitude de deixar as coisas como estavam.
O parágrafo anterior é muito contestável. Usei ali a palavra "custos". As medidas necessárias implicavam custos.
De que custos eu estava falando? Custos para o governo? Custos para a sociedade? Custos para os ricos? Custos para os pobres? Agora começamos a falar de política.
Desconfio que vivemos o seguinte dilema. O receituário a ser seguido é sempre de direita: zerar o déficit, cortar os gastos públicos, remunerar o investidor, parar de financiar a agricultura, a casa própria, espremer o orçamento dos Estados e municípios...
Mas a direita depende de gastos públicos. Não se reelege sem eles. O dinheiro das concorrências malfeitas se gasta em adesivos, bandeirinhas, contratos publicitários e boas contas bancárias nas ilhas Cayman.
O mais mísero prefeito do interior de Pernambuco depende tanto quanto Maluf das obras que fez.
A publicidade eleitoral celebra o feito. Claro. As melhorias são reais. Os custos, não tanto.
O governo federal está aliado, por razões partidárias, fisiológicas, parlamentares, com uma máquina corrupta e empreendedora, a qual encontra, junto ao povo, o mais sórdido e analfabeto assentimento.
O círculo vicioso se fecha. Gasta-se menos em educação e mais em viadutos.
Os viadutos rendem mais votos que a educação. A burrice do povo brasileiro se consolida numa espécie de felicidade sem dentes.
Uma estrada parece mais valiosa ao analfabeto do que um programa de alfabetização: pois, desse modo, o analfabeto pode se orgulhar de seu espírito público.
O dilema referido acima se institui: os "custos" de uma reforma tributária, de uma reforma educacional etc. tornam-se altíssimos para a direita.
Justo a direita, que, se fosse direitista de fato, estaria empenhada em eficiência, rigor competitivo e saúde orçamentária. A direita brasileira não tem compromisso com nenhuma dessas coisas.
E a esquerda? Aí tudo piora de vez. Está diante de um desafio talvez jamais visto na história mundial: a classe baixa adora a direita.
Cada infeliz não dirige ao rico seu ódio, e sim sua gratidão. Escravismo e desemprego se somam nesse complexo.
Voltando ao início deste artigo. Havia um dilema a ser resolvido nas reformas que não vieram.
De um lado, o receituário direitista não pode ser aplicado pela direita. De outro, a esquerda detesta (é claro) o receituário direitista.
Mas poderia aplicá-lo, se quisesse, já que não tem compromissos com o sistema político.
Imagino um governo de esquerda que eliminasse funcionários públicos, que se recusasse a obras suspeitas, que estrangulasse prefeituras...
E que seguisse a mais pura ortodoxia econômica, zerando o déficit com uma reforma tributária punitiva contra os ricos. Estaria seguindo o receituário da direita, contra os privilégios existentes.
Só que a direita, quando nega o próprio receituário, força a esquerda a uma espécie de paternalismo residual, o paternalismo dos excluídos.
Alguma dúvida quanto ao fato de que os capitais estrangeiros fogem dessa situação?
A única reforma tributária possível, com vistas a um ortodoxo ajuste das contas públicas, deveria fazer-se contra uma minoria privilegiada, num país que ostenta o recorde de concentração de renda mundial.
Mas falar de minoria privilegiada é de esquerda, e falar de ajuste das contas públicas é de direita.
Resulta o seguinte: FHC é confiável para o capital internacional. Nenhuma dúvida. Mas o capital foge do Brasil como o diabo da cruz.
Lula tem tudo para afugentar os capitais. Mas é porque tem medo do medo que ele mesmo provoca.
Os efeitos dessa comédia de erros são visíveis no horário político. De um lado, temos FHC dizendo que nada vai acontecer -que ele vai dobrar os gastos com saúde, por exemplo.
Do mesmo lado, temos um FHC dizendo que tudo vai acontecer -e que é ele o mais preparado para enfrentar a crise.
Não duvido. Mas penso nos seguintes raciocínios alternativos: se FHC é o mais preparado para enfrentar a crise, por que não tomou medidas para evitá- la? Ou, de forma menos grosseira: por que apostou no fato de que ela não viria?
Outras opções: FHC é mais preparado para enfrentar a crise. Mas quem é mais sensível aos efeitos da crise? Quem sabe o lugar da ferida e não tem medo de pôr o dedo nela? Não seria Lula?
Não que eu esteja defendendo o voto em Lula. Acho que tanto Lula quanto FHC estão presos a compromissos ideológicos e monetários que os imobilizam. As razões dessa imobilidade é que me parecem contestáveis.
Estamos em crise. Ótimo momento para dizer a verdade. Os marqueteiros enfeitam-na.
Para quê? De que adianta ser reeleito para amargar depois as críticas mais violentas e as mais constrangedoras quedas nos índices de popularidade?
Obviamente, FHC não deve esperar pela reeleição. Deve lançar seu pacote já. O povo, esse povo de escravos, digno de Debret e de Rugendas, assente e agradece.



Texto Anterior | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.