|
Texto Anterior | Índice
Afinal de contas, quem é o culpado da crise?
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Não me sinto à vontade para
comentar a crise econômica, os
riscos de ataque especulativo, a
necessidade de desvalorização
do Real ou os erros do governo.
Muitos comentaristas podem
dizer, diante da catástrofe iminente: "Bem que eu avisei...".
Claro, muitas medidas deveriam ter sido tomadas. A reforma tributária não foi feita.
Energias imensas se consumiram na emenda da reeleição.
Parece-me claro, contudo,
que, se as famosas "medidas"
não "foram tomadas", é porque
também implicavam custos, e o
que ocorre é menos uma inércia
criminosa do governo e mais
uma avaliação equivocada (irresponsável?) dos perigos, riscos
e anti-riscos envolvidos na atitude de deixar as coisas como
estavam.
O parágrafo anterior é muito
contestável. Usei ali a palavra
"custos". As medidas necessárias implicavam custos.
De que custos eu estava falando? Custos para o governo?
Custos para a sociedade? Custos para os ricos? Custos para os
pobres? Agora começamos a falar de política.
Desconfio que vivemos o seguinte dilema. O receituário a
ser seguido é sempre de direita:
zerar o déficit, cortar os gastos
públicos, remunerar o investidor, parar de financiar a agricultura, a casa própria, espremer o orçamento dos Estados e
municípios...
Mas a direita depende de gastos públicos. Não se reelege sem
eles. O dinheiro das concorrências malfeitas se gasta em adesivos, bandeirinhas, contratos
publicitários e boas contas bancárias nas ilhas Cayman.
O mais mísero prefeito do interior de Pernambuco depende
tanto quanto Maluf das obras
que fez.
A publicidade eleitoral celebra o feito. Claro. As melhorias
são reais. Os custos, não tanto.
O governo federal está aliado,
por razões partidárias, fisiológicas, parlamentares, com uma
máquina corrupta e empreendedora, a qual encontra, junto
ao povo, o mais sórdido e analfabeto assentimento.
O círculo vicioso se fecha. Gasta-se menos em educação e
mais em viadutos.
Os viadutos rendem mais votos que a educação. A burrice
do povo brasileiro se consolida
numa espécie de felicidade sem
dentes.
Uma estrada parece mais valiosa ao analfabeto do que um
programa de alfabetização:
pois, desse modo, o analfabeto
pode se orgulhar de seu espírito
público.
O dilema referido acima se
institui: os "custos" de uma reforma tributária, de uma reforma educacional etc. tornam-se
altíssimos para a direita.
Justo a direita, que, se fosse
direitista de fato, estaria empenhada em eficiência, rigor competitivo e saúde orçamentária.
A direita brasileira não tem
compromisso com nenhuma
dessas coisas.
E a esquerda? Aí tudo piora
de vez. Está diante de um desafio talvez jamais visto na história mundial: a classe baixa
adora a direita.
Cada infeliz não dirige ao rico
seu ódio, e sim sua gratidão. Escravismo e desemprego se somam nesse complexo.
Voltando ao início deste artigo. Havia um dilema a ser resolvido nas reformas que não
vieram.
De um lado, o receituário direitista não pode ser aplicado
pela direita. De outro, a esquerda detesta (é claro) o receituário direitista.
Mas poderia aplicá-lo, se quisesse, já que não tem compromissos com o sistema político.
Imagino um governo de esquerda que eliminasse funcionários públicos, que se recusasse a obras suspeitas, que estrangulasse prefeituras...
E que seguisse a mais pura ortodoxia econômica, zerando o
déficit com uma reforma tributária punitiva contra os ricos.
Estaria seguindo o receituário
da direita, contra os privilégios
existentes.
Só que a direita, quando nega
o próprio receituário, força a
esquerda a uma espécie de paternalismo residual, o paternalismo dos excluídos.
Alguma dúvida quanto ao fato de que os capitais estrangeiros fogem dessa situação?
A única reforma tributária
possível, com vistas a um ortodoxo ajuste das contas públicas,
deveria fazer-se contra uma
minoria privilegiada, num país
que ostenta o recorde de concentração de renda mundial.
Mas falar de minoria privilegiada é de esquerda, e falar de
ajuste das contas públicas é de
direita.
Resulta o seguinte: FHC é confiável para o capital internacional. Nenhuma dúvida. Mas o
capital foge do Brasil como o
diabo da cruz.
Lula tem tudo para afugentar
os capitais. Mas é porque tem
medo do medo que ele mesmo
provoca.
Os efeitos dessa comédia de
erros são visíveis no horário político. De um lado, temos FHC
dizendo que nada vai acontecer
-que ele vai dobrar os gastos
com saúde, por exemplo.
Do mesmo lado, temos um
FHC dizendo que tudo vai
acontecer -e que é ele o mais
preparado para enfrentar a crise.
Não duvido. Mas penso nos
seguintes raciocínios alternativos: se FHC é o mais preparado
para enfrentar a crise, por que
não tomou medidas para evitá-
la? Ou, de forma menos grosseira: por que apostou no fato de
que ela não viria?
Outras opções: FHC é mais
preparado para enfrentar a crise. Mas quem é mais sensível
aos efeitos da crise? Quem sabe
o lugar da ferida e não tem medo de pôr o dedo nela? Não seria Lula?
Não que eu esteja defendendo
o voto em Lula. Acho que tanto
Lula quanto FHC estão presos a
compromissos ideológicos e monetários que os imobilizam. As
razões dessa imobilidade é que
me parecem contestáveis.
Estamos em crise. Ótimo momento para dizer a verdade. Os
marqueteiros enfeitam-na.
Para quê? De que adianta ser
reeleito para amargar depois as
críticas mais violentas e as mais
constrangedoras quedas nos índices de popularidade?
Obviamente, FHC não deve
esperar pela reeleição. Deve
lançar seu pacote já. O povo, esse povo de escravos, digno de
Debret e de Rugendas, assente e
agradece.
Texto Anterior | Índice
|