São Paulo, sexta, 16 de outubro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTES PLÁSTICAS
Mark Rothko exibe sua herança trágica e radiante

AMIR LABAKI
de Nova York

Uma popular camiseta nova-iorquina, dessas vendidas em museus, é a última prova do crescente reconhecimento da obra do pintor abstrato americano Mark Rothko (1903-1970). O desenho resume a história da arte em nove etapas, representadas por rascunhos simples da essência da pintura de nove artistas. Sumarizado por uma tela formada por dois retângulos desiguais, olhinhos no de cima, sorriso no de baixo, Rothko é um deles.
O Whitney Museum of American Art celebra o legado de Rothko até o dia 29 de novembro. Reunindo mais de cem de seus principais quadros, a exposição veio da National Gallery de Washington, organizadora da mostra, e parte em seguida para o Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris. É a mais completa retrospectiva de Rothko desde a sediada pelo Guggenheim nova-iorquino há duas décadas.
Nada como o tempo para dar a tudo sua devida dimensão. A mostra anterior estava próxima demais do suicídio do artista, da interpretação messiânica de sua obra emprestada por ele aos críticos, da querela então vigente em torno de seu espólio.
Vinte anos se passaram e a obra de Rothko parece viçosa como nunca. Excetuados Jackson Pollock (1912-1956) e Barnett Newman (1905-1970), não se pode estender o cumprimento automaticamente aos demais membros da Escola de Nova York, o grupo de pintores que abraçou a abstração nos anos 40 apostando ser possível tratar de assuntos essenciais sem depender apenas da figuração.
Rothko passou no teste ao expressar todos os sentimentos do mundo por meio das inúmeras variantes de sua pintura típica: dois ou mais retângulos horizontalmente paralelos suspensos em frente de um fundo monocromático distinto. A exposição curada por Jeffrey Weiss mostra didaticamente o processo pelo qual Rothko, um pobre exilado russo que se fez pintor às vésperas da depressão pós-1929, chegou a essa composição.
A primeira sala, dedicada ao Rothko figurativo dos anos 30, é especialmente reveladora. Muito mais importante que o inseguro esboço de ruas e metrôs de Nova York é a presença precoce da composição geométrica de um futuro Rothko típico.
Na década seguinte, resumida em duas salas, Rothko flerta com o surrealismo de Tanguy e Miró e com o abstracionismo de Avery, em fases que raramente se aproximam da composição que se tornaria clássica. Seguem-se, entre 1947 e 1949, as chamadas "multiformas", estudos abstratos com crescente preocupação com cor e escala.
Precisamente 1949 data o aparecimento daquele esquemático Rothko essencial. Durante os 15 anos seguintes, o pintor vai submeter esse modelo a radicais mudanças, sobretudo de cor e da dimensão da tela.
Primeiro, a cor. Rothko nos hipnotiza exatamente pela intensidade de suas cores. Destacam-se em sua paleta a profundidade de seus azuis, a gravidade de seus vermelhos e a fulgurante luminosidade dos laranjas e amarelos. Há algo de essencialmente primaveril nesse Rothko maduro, o que, para desespero dos reducionistas biográficos, se choca com a torturada personalidade do artista.
O tamanho foi a segunda grande variável. Rothko aumentou progressivamente a dimensão de suas telas. Queria que o quadro envolvesse seu visitante, sendo a um só tempo "grandioso" e "íntimo".
Buscava Rothko uma espécie de comunhão espiritual entre o artista e o espectador, entre sua arte e nosso ego, algo similar ao "sentimento oceânico" que Freud define como fundamental para a religiosidade. O sublime seria uma espécie de passaporte para este estágio superior de interação.
Não surpreende, assim, que na década final de sua carreira Rothko tenha feito sua arte extravasar os limites da tela e enfrentar a dimensão de murais. O mais acabado exemplo é a chamada capela Rothko, localizada no Universidade de St. Thomas, em Houston, Texas. A exposição traz algumas obras contemporâneas de Rothko (1964-67) que dão uma pálida idéia do impacto daquela que, para ele, foi sua obra máxima.
O tom já é aqui absolutamente outro. Foi-se a luz, impondo-se um registro muito mais sombrio. O marrom substituiu o vermelho, o preto destronou o amarelo, o azul converteu-se em cinza. As diferenças de profundidade tornavam-se também muito mais difusas. Se antes a sensação era de expansão, agora é de enclausuramento. Rothko realizava como que uma versão em curto-circuito de seu próprio modelo.
Combalido física e psicologicamente, nos dois anos finais de vida Rothko ainda vai exibir forças em novas tentativas de reinventar-se. Duas composições básicas foram retrabalhadas, tendo em comum inéditas margens brancas.
Na primeira, cores escuras, preto e marrom principalmente, dividem a tela ao meio. Tons suaves de rosa e azul, na segunda, compõem retângulos de distintos tamanhos.
Parecem obras de uma transição -abrupta, mas não surpreendente- interrompida pelo suicídio do pintor. Nenhuma rouba-nos o fôlego, como qualquer tela do período áureo fazia. Aqueles são quadros de uma beleza marcante e arrebatadora. A vida de Rothko pode ter sido trágica, mas sua herança não poderia ser mais radiante.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.