São Paulo, sexta-feira, 16 de novembro de 2001

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CRÍTICA

Asseptismo e discurso político criam incômodo

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DO FOLHATEEN

"Mater Dei" , o segundo longa de Vinicius Mainardi em parceria com o irmão Diogo (responsável pelo roteiro), poderia começar (ou terminar) com aqueles letreiros manjados: "Este filme é baseado em fatos reais". Seus personagens estão ainda sujos das tintas dos jornais.
A saber: um empreiteiro inescrupuloso, responsável pela obra superfaturada de construção de uma nova sede para o Tribunal Regional do Trabalho, e um juiz corrupto. A trama se complementa com o envolvimento de dois irmãos, Vini, um cineasta, e Diogo, um jornalista, com os tais corruptos, na tentativa de encontrar financiamento para uma adaptação de um conto de Machado de Assis para o cinema.
A impressão dominante é que se trata de um filme político em tom de farsa ou de uma comédia sem risos. A pretensão tem lá suas justificativas, mas o resultado é constrangedor.
Como fator dramático, os Mainardi introduziram a figura bíblica de Maria (encarnada sem relevo por Carolina Ferraz), que carrega em seu ventre uma criança a ser sacrificada num cruel acerto de contas entre o construtor e o juiz. Maria é um foco simbólico, uma "metáfora" de uma sociedade cujos filhos são sacrificados para alimentar a sede dos poderosos. Brasil? Parece que sim.
Partindo desse excesso de "realismo", os personagens de "Mater Dei" resvalam sem muita consistência para o plano da paródia, que poderia até funcionar se fosse levada ao extremo. Mas nossa realidade sempre escapa das tentativas de retratá-la como mais absurda do que ela já é.
A ironia, por sua vez, aparece muitas vezes como um jogo de auto-referência, particularmente nas situações derrisórias no retrato dos dois irmãos. "Seu filme é muito ruim", expressa Maria ao cineasta Vini a certa altura. O espectador tende a concordar.
O que praticamente anula a intenção farsesca, nos exaustivos 83 minutos de duração de "Mater Dei", é a tentação do discurso. Não bastasse a eloquência do mau-caratismo dos personagens, o espectador ainda é obrigado a ouvir falações sobre a crise ética, a corrupção de A a Z, a falta de cultura da classe dominante, o fascismo da estetização da violência e por aí vai.
Outro incômodo é criado pelo tratamento asseptizado da imagem. A cuidadosa fotografia em DV (vídeo digital) capta a cidade de São Paulo como se fosse um cenário sem rugas. Os "cartões-postais" pululam, e, pelo menos das ruas tais como filmadas aqui, a sociedade (e suas arestas, para não dizer injustiças) foi cuidadosamente afastada para não poluir a imagem.
Além do mérito de ser uma produção barata, realizada sem "as falcatruas do financiamento oficial" e bem resolvida tecnicamente, "Mater Dei" exerce um salutar efeito colateral sobre o espectador: quando acaba, dá vontade de sair correndo para assistir a um bom filme.


Mater Dei
 
Direção: Vinicius Mainardi
Produção: Brasil, 2001
Com: Carolina Ferraz, Gabriel Braga Nunes, Celso Frateschi
Quando: a partir de hoje no Anália Franco, Unibanco Arteplex, Jardim Sul, Sala UOL, SP Market e Tamboré



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