São Paulo, sábado, 16 de novembro de 2002

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Literatura e solidão

Livro de Eder Chiodetto reúne fotos de 36 escritores e de seus locais de trabalho ao lado de depoimentos a respeito do ofício

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Escrever? "É uma chateação", diz Rachel de Queiroz. "Um atrapalho", concorda Marilene Felinto. Sofrendo com os prazos de entrega de seus livros, João Ubaldo diz o mesmo: "Me chateia ter de escrever. Estou sempre atrasado. Quanto mais escrevo, mais atrasado fico". No escritório de Hilda Hilst, um relógio traz a seguinte inscrição no mostrador: "É mais tarde do que supões".
Ferreira Gullar prefere pintar a escrever: "Escrever é um troço bravo. Pintar é bom porque você não pensa". Luis Fernando Verissimo sente o mesmo: "Gosto mais de desenhar do que de escrever. A falta de ânimo e de idéias é constante". Autran Dourado resume: "Escritor sempre sofre".
Frases desse tipo são frequentes no livro de Eder Chiodetto, 37, editor de Fotografia da Folha, que reúne fotos de 36 escritores e de seus locais de trabalho, ao lado dos curtos e geralmente desconsolados depoimentos que prestam a respeito do ofício. De um modo ou de outro, é frequente que o título, o nome, o rótulo de "escritor" pareça pesar um pouco sobre os que vivem essa condição.
A angústia da página em branco é mencionada por Modesto Carone, Cristóvão Tezza, Ana Miranda e Paulo Lins. Uma frase de Nélida Piñon confirma isso pelo caminho inverso: "Tenho uma alegria especial quando a caneta falha e acaba a tinta. Significa que avancei um pouquinho no texto. Que em algum lugar, sob a forma de palavras, deixei a tinta".
Diante das dificuldades, há quem recorra a pequenos rituais, imponha-se rotinas ou decrete a si mesmo duros ultimatos. "Venho para cá todos os dias", diz Silviano Santiago de seu escritório, "e fico das 7h ao meio-dia, inclusive aos sábados e alguns domingos". Hilda Hilst foi mais radical: "Me fechei nesta casa aos 33 anos para criar uma obra literária. Era o auge da minha beleza. Reneguei minha agitada vida social, namorados, família, tudo (...). Logo ao acordar me mantinha fechada com a máquina de escrever em meu quarto. Só me liberava para sair de lá após escrever no mínimo 500 palavras. Alguns dias eram terríveis porque não conseguia escrever e saía do quarto só no final da tarde, para brincar com os cachorros".
É assim que o ambiente de trabalho dos escritores, tema das fotos de Chiodetto, assume importância quase mística. Espaços de austeridade e ordem, como o escritório de Cristóvão Tezza, ou o quarto com cama, estante e escrivaninha de Rubens Figueiredo, ou ainda o vasto e encerado corredor ao fundo do qual fica escrevendo Bernardo Carvalho, contrastam com as bagunçadas bibliotecas de João Ubaldo, Haroldo de Campos e Moacyr Scliar.
As fotos muitas vezes enfatizam, pelo ângulo das lentes, o efeito de uma verdadeira avalanche de livros, com o escritor quase que se afundando no ponto de fuga de uma perspectiva exagerada.
Mais curiosas são as fotos de quem escreve "em qualquer lugar". Adélia Prado, na sala de jantar, diz: "Não separo a dona-de-casa da escritora. Vejo criação literária e vida pessoal como um tecido único". Régis Bonvicino é fotografado andando na rua, enquanto Nélida Piñon, no sofá da sala, com o caderno no colo, é um exemplo, entre vários, de recusa ao computador. A máquina, diz Milton Hatoum, "me cobra exatidão e velocidade o tempo todo. Sou inexato e lento".
É como se, numa reação aos atributos da inspiração divina, do privilégio verbal, da missão civilizatória e da tarefa política que, sucessivamente, foram sendo associados ao escritor do século 19 em diante, predominasse um desesperado esforço de "normalização" e de "desmistificação" da atividade.
Mas é difícil desmistificar totalmente uma tarefa em que se investem tantas expectativas narcísicas, e que só em raros casos se firma como um mero ganha-pão. Nesse sentido, o título do livro de Chiodetto -"O Lugar do Escritor"- assume uma dimensão tanto metafórica quanto literal. As fotos reiteram e desmontam a pose do escritor; isolam-no e ao mesmo tempo o fragilizam; inscrevem-no num espaço imaginário (o da Literatura, com L maiúsculo) do qual ele tenta, em vão, se libertar. Mas não sei se há tanta vontade de se libertar assim.


O Lugar do Escritor
    
Autor: Eder Chiodetto
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 77 (208 págs.)
Lançamento: 21/11, às 20h, no Sesc Vila Mariana (r. Pelotas, 141, São Paulo, tel. 0/ xx/11/5080-3000), com exposição de fotos do livro (até 3/1/2003)



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