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Literatura e solidão
Livro de Eder Chiodetto reúne fotos de 36 escritores e de seus locais de trabalho ao lado de depoimentos a respeito do ofício
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Escrever? "É uma chateação", diz Rachel de Queiroz.
"Um atrapalho", concorda Marilene Felinto. Sofrendo com os
prazos de entrega de seus livros,
João Ubaldo diz o mesmo: "Me
chateia ter de escrever. Estou
sempre atrasado. Quanto mais escrevo, mais atrasado fico". No escritório de Hilda Hilst, um relógio
traz a seguinte inscrição no mostrador: "É mais tarde do que supões".
Ferreira Gullar prefere pintar a
escrever: "Escrever é um troço
bravo. Pintar é bom porque você
não pensa". Luis Fernando Verissimo sente o mesmo: "Gosto mais
de desenhar do que de escrever. A
falta de ânimo e de idéias é constante". Autran Dourado resume:
"Escritor sempre sofre".
Frases desse tipo são frequentes
no livro de Eder Chiodetto, 37,
editor de Fotografia da Folha, que
reúne fotos de 36 escritores e de
seus locais de trabalho, ao lado
dos curtos e geralmente desconsolados depoimentos que prestam a respeito do ofício. De um
modo ou de outro, é frequente
que o título, o nome, o rótulo de
"escritor" pareça pesar um pouco
sobre os que vivem essa condição.
A angústia da página em branco
é mencionada por Modesto Carone, Cristóvão Tezza, Ana Miranda
e Paulo Lins. Uma frase de Nélida
Piñon confirma isso pelo caminho inverso: "Tenho uma alegria
especial quando a caneta falha e
acaba a tinta. Significa que avancei um pouquinho no texto. Que
em algum lugar, sob a forma de
palavras, deixei a tinta".
Diante das dificuldades, há
quem recorra a pequenos rituais,
imponha-se rotinas ou decrete a
si mesmo duros ultimatos. "Venho para cá todos os dias", diz Silviano Santiago de seu escritório,
"e fico das 7h ao meio-dia, inclusive aos sábados e alguns domingos". Hilda Hilst foi mais radical:
"Me fechei nesta casa aos 33 anos
para criar uma obra literária. Era
o auge da minha beleza. Reneguei
minha agitada vida social, namorados, família, tudo (...). Logo ao
acordar me mantinha fechada
com a máquina de escrever em
meu quarto. Só me liberava para
sair de lá após escrever no mínimo 500 palavras. Alguns dias
eram terríveis porque não conseguia escrever e saía do quarto só
no final da tarde, para brincar
com os cachorros".
É assim que o ambiente de trabalho dos escritores, tema das fotos de Chiodetto, assume importância quase mística. Espaços de
austeridade e ordem, como o escritório de Cristóvão Tezza, ou o
quarto com cama, estante e escrivaninha de Rubens Figueiredo,
ou ainda o vasto e encerado corredor ao fundo do qual fica escrevendo Bernardo Carvalho, contrastam com as bagunçadas bibliotecas de João Ubaldo, Haroldo de Campos e Moacyr Scliar.
As fotos muitas vezes enfatizam, pelo ângulo das lentes, o
efeito de uma verdadeira avalanche de livros, com o escritor quase
que se afundando no ponto de fuga de uma perspectiva exagerada.
Mais curiosas são as fotos de
quem escreve "em qualquer lugar". Adélia Prado, na sala de jantar, diz: "Não separo a dona-de-casa da escritora. Vejo criação literária e vida pessoal como um tecido único". Régis Bonvicino é fotografado andando na rua, enquanto Nélida Piñon, no sofá da
sala, com o caderno no colo, é um
exemplo, entre vários, de recusa
ao computador. A máquina, diz
Milton Hatoum, "me cobra exatidão e velocidade o tempo todo.
Sou inexato e lento".
É como se, numa reação aos
atributos da inspiração divina, do
privilégio verbal, da missão civilizatória e da tarefa política que, sucessivamente, foram sendo associados ao escritor do século 19 em
diante, predominasse um desesperado esforço de "normalização" e de "desmistificação" da atividade.
Mas é difícil desmistificar totalmente uma tarefa em que se investem tantas expectativas narcísicas, e que só em raros casos se
firma como um mero ganha-pão.
Nesse sentido, o título do livro de
Chiodetto -"O Lugar do Escritor"- assume uma dimensão
tanto metafórica quanto literal.
As fotos reiteram e desmontam a
pose do escritor; isolam-no e ao
mesmo tempo o fragilizam; inscrevem-no num espaço imaginário (o da Literatura, com L maiúsculo) do qual ele tenta, em vão, se
libertar. Mas não sei se há tanta
vontade de se libertar assim.
O Lugar do Escritor
Autor: Eder Chiodetto
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 77 (208 págs.)
Lançamento: 21/11, às 20h, no Sesc Vila
Mariana (r. Pelotas, 141, São Paulo, tel. 0/
xx/11/5080-3000), com exposição de
fotos do livro (até 3/1/2003)
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