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MARCELO COELHO
Gangues em Paris, escritores no Capão Redondo
Com indisfarçável prazer terceiro-mundista, andamos
falando bastante da periferia de
Paris nos últimos tempos: nada
como alguns incêndios e distúrbios para esses franceses aprenderem o que é bom para a tosse...
Enquanto isso, na nossa situação de relativa calma social, pode
ser interessante dar uma olhada
num livro organizado pelo escritor Ferréz, morador do Capão Redondo, extremo sul de São Paulo.
Trata-se de "Literatura Marginal:
Talentos da Escrita Periférica"
(editora Agir), reunindo contos e
poemas anteriormente publicados em edições especiais da revista "Caros Amigos".
O livro, de 132 páginas, abre-se
com um texto de apresentação do
próprio Ferréz, intitulado "Terrorismo Literário". Vale citar seus
parágrafos iniciais, como que sacudidos por um movimento de
afirmação e de negação, revoltado e celebratório ao mesmo tempo.
"A capoeira não vem mais, agora reagimos com a palavra, porque pouca coisa mudou, principalmente para nós. Não somos
movimento, não somos os novos,
não somos nada, nem pobres,
porque pobre, segundo os poetas
da rua, é quem não tem as coisas.
Cala a boca, negro e pobre aqui
não tem vez! Cala a boca! Cala a
boca uma porra, agora a gente fala, agora a gente canta, e na moral agora a gente escreve (...) Não
somos o retrato, pelo contrário,
mudamos o foco e tiramos nós
mesmos a nossa foto."
De Luiz Alberto Mendes, que
narra sua experiência como detento no Carandiru, a Dona Laura, "porta-voz de sua comunidade na colônia de pescadores 2-3,
em Pelotas - RS", passando por
Eduardo Dum-Dum (Facção
Central), do Grajaú (São Paulo),
todos os autores do livro pertencem, no dizer de Ferréz, às "três
letras classes: C, D, e E".
O que os move, claro, é a necessidade de não mais serem "objeto" do discurso alheio -da literatura, do jornalismo, da sociologia
feita pelas "classes A e B". Trata-se de tomar a palavra, na certeza
de que "cultura é poder", como
diz Preto Ghóez, que acrescenta:
"Eles nos querem onde estamos,
nos querem brutos e tristes, nos
darão armas e drogas e escreverão novos roteiros e farão novos
filmes sobre nossas vidas em nosso habitat, mal sabem eles que o
sangue já transborda da perifa,
que existe mão-de-obra excedente com armas na mão (...)".
O texto de Preto Ghóez vai longe, num ritmo de memorável eloqüência. O "eles" desse discurso
todo corresponde, claro, a "nós",
eu e você, leitor, embora -do
nosso ponto de vista- o retrato
seja um tanto distorcido. Sabemos perfeitamente, por exemplo,
que "o sangue já transborda da
perifa" e que "existe mão-de-obra
excedente com armas na mão".
Todo membro da classe dominante sabe que a classe baixa representa uma ameaça potencial à
sua segurança.
Mas o jogo literário, aqui, é de
outra ordem. Para se afirmar como sujeito, é preciso que o autor
desqualifique tudo o que tenha sido dito a respeito de sua condição
social: "Não nos conhecem", "não
sabem disto e daquilo", "falam de
fora" etc.
Com isso, os textos de "Literatura Marginal" acabam se tornando mais paradoxais do que parecem à primeira vista. O manifesto
de apresentação de Ferréz oscila,
por exemplo, entre dois registros:
o jargão acadêmico e a fala popular, entre o discurso "de fora" e a
fala "autêntica".
Num trecho, lemos frases assim:
"Jogando contra a massificação
que domina e aliena os assim
chamados por eles de "excluídos
sociais" e para nos certificar de
que o povo da periferia/favela/
gueto tenha sua colocação na história (...) a literatura marginal se
faz presente...". E, logo em seguida: "Na real, nego, o povo num
tem nem o básico pra comer, e
mesmo assim, meu tio, a gente faz
por onde pode ter us barato pra
agüentar mais um dia".
O empenho autêntico de auto-afirmação não dispensa uma fraseologia "externa", um sociologuês legitimador. Mas Ferréz rejeita essa posição de dependência:
"Sabe duma coisa, o mais louco é
que não precisamos de sua legitimação, porque não batemos na
porta de ninguém para abrir, nós
arrombamos a porta e entramos". O problema é que, embora
dispense a legitimação do leitor
burguês, o texto continua se dirigindo a esse mesmíssimo leitor.
A contradição não tem como
ser resolvida numa sociedade em
que a maioria não lê, muito menos escreve. Querendo falar com a
"voz da periferia", muitos desses
autores terminam usando uma
linguagem estereotipada, como
para provar que estão "fazendo
literatura". "Durante muito tempo naveguei pelos mares da vida,
num barco de ilusões", diz alguém; para outro escritor, "meus
olhos vêem quando eu olho pra
favela almas tristes, sonhos frustrados, esperanças destruídas,
crianças sem futuro, vejo apenas
vítimas de dor".
As contradições não são menores no plano semântico, com
mensagens opostas coexistindo
vertiginosamente num mesmo
texto: o ser humano será sempre
igual, mas a paz vencerá; a justiça
será feita, mas o poder está sempre nas mãos de uns poucos; somos ignorados, mas já ouvem
nosso grito, e assim por diante.
Tantos clichês e ambigüidades
revelam, entretanto, uma situação mais complexa e interessante
do que a atual capacidade dos
"escritores marginais" para descrevê-la. Antes de tudo, parece
haver tanto uma condição de real
isolamento social -o gueto, a
discriminação, a pobreza-
quanto um acréscimo notável nos
meios de informação -a TV, a
escola, a internet.
Nelson Mandela e Hitler, Ceausescu e João Antônio, Zumbi e
Kafka aparecem nos textos, ao
mesmo tempo em que as referências à realidade imediata do desemprego e do tráfico de drogas.
Um presente imutável e as evidências da mudança estão ali, em
cada página, lado a lado. O livro
está pronto, mas a história continua.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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