São Paulo, quarta-feira, 16 de novembro de 2005

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MARCELO COELHO

Gangues em Paris, escritores no Capão Redondo

Com indisfarçável prazer terceiro-mundista, andamos falando bastante da periferia de Paris nos últimos tempos: nada como alguns incêndios e distúrbios para esses franceses aprenderem o que é bom para a tosse...
Enquanto isso, na nossa situação de relativa calma social, pode ser interessante dar uma olhada num livro organizado pelo escritor Ferréz, morador do Capão Redondo, extremo sul de São Paulo. Trata-se de "Literatura Marginal: Talentos da Escrita Periférica" (editora Agir), reunindo contos e poemas anteriormente publicados em edições especiais da revista "Caros Amigos".
O livro, de 132 páginas, abre-se com um texto de apresentação do próprio Ferréz, intitulado "Terrorismo Literário". Vale citar seus parágrafos iniciais, como que sacudidos por um movimento de afirmação e de negação, revoltado e celebratório ao mesmo tempo.
"A capoeira não vem mais, agora reagimos com a palavra, porque pouca coisa mudou, principalmente para nós. Não somos movimento, não somos os novos, não somos nada, nem pobres, porque pobre, segundo os poetas da rua, é quem não tem as coisas. Cala a boca, negro e pobre aqui não tem vez! Cala a boca! Cala a boca uma porra, agora a gente fala, agora a gente canta, e na moral agora a gente escreve (...) Não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto."
De Luiz Alberto Mendes, que narra sua experiência como detento no Carandiru, a Dona Laura, "porta-voz de sua comunidade na colônia de pescadores 2-3, em Pelotas - RS", passando por Eduardo Dum-Dum (Facção Central), do Grajaú (São Paulo), todos os autores do livro pertencem, no dizer de Ferréz, às "três letras classes: C, D, e E".
O que os move, claro, é a necessidade de não mais serem "objeto" do discurso alheio -da literatura, do jornalismo, da sociologia feita pelas "classes A e B". Trata-se de tomar a palavra, na certeza de que "cultura é poder", como diz Preto Ghóez, que acrescenta: "Eles nos querem onde estamos, nos querem brutos e tristes, nos darão armas e drogas e escreverão novos roteiros e farão novos filmes sobre nossas vidas em nosso habitat, mal sabem eles que o sangue já transborda da perifa, que existe mão-de-obra excedente com armas na mão (...)".
O texto de Preto Ghóez vai longe, num ritmo de memorável eloqüência. O "eles" desse discurso todo corresponde, claro, a "nós", eu e você, leitor, embora -do nosso ponto de vista- o retrato seja um tanto distorcido. Sabemos perfeitamente, por exemplo, que "o sangue já transborda da perifa" e que "existe mão-de-obra excedente com armas na mão". Todo membro da classe dominante sabe que a classe baixa representa uma ameaça potencial à sua segurança.
Mas o jogo literário, aqui, é de outra ordem. Para se afirmar como sujeito, é preciso que o autor desqualifique tudo o que tenha sido dito a respeito de sua condição social: "Não nos conhecem", "não sabem disto e daquilo", "falam de fora" etc.
Com isso, os textos de "Literatura Marginal" acabam se tornando mais paradoxais do que parecem à primeira vista. O manifesto de apresentação de Ferréz oscila, por exemplo, entre dois registros: o jargão acadêmico e a fala popular, entre o discurso "de fora" e a fala "autêntica".
Num trecho, lemos frases assim: "Jogando contra a massificação que domina e aliena os assim chamados por eles de "excluídos sociais" e para nos certificar de que o povo da periferia/favela/ gueto tenha sua colocação na história (...) a literatura marginal se faz presente...". E, logo em seguida: "Na real, nego, o povo num tem nem o básico pra comer, e mesmo assim, meu tio, a gente faz por onde pode ter us barato pra agüentar mais um dia".
O empenho autêntico de auto-afirmação não dispensa uma fraseologia "externa", um sociologuês legitimador. Mas Ferréz rejeita essa posição de dependência: "Sabe duma coisa, o mais louco é que não precisamos de sua legitimação, porque não batemos na porta de ninguém para abrir, nós arrombamos a porta e entramos". O problema é que, embora dispense a legitimação do leitor burguês, o texto continua se dirigindo a esse mesmíssimo leitor.
A contradição não tem como ser resolvida numa sociedade em que a maioria não lê, muito menos escreve. Querendo falar com a "voz da periferia", muitos desses autores terminam usando uma linguagem estereotipada, como para provar que estão "fazendo literatura". "Durante muito tempo naveguei pelos mares da vida, num barco de ilusões", diz alguém; para outro escritor, "meus olhos vêem quando eu olho pra favela almas tristes, sonhos frustrados, esperanças destruídas, crianças sem futuro, vejo apenas vítimas de dor".
As contradições não são menores no plano semântico, com mensagens opostas coexistindo vertiginosamente num mesmo texto: o ser humano será sempre igual, mas a paz vencerá; a justiça será feita, mas o poder está sempre nas mãos de uns poucos; somos ignorados, mas já ouvem nosso grito, e assim por diante.
Tantos clichês e ambigüidades revelam, entretanto, uma situação mais complexa e interessante do que a atual capacidade dos "escritores marginais" para descrevê-la. Antes de tudo, parece haver tanto uma condição de real isolamento social -o gueto, a discriminação, a pobreza- quanto um acréscimo notável nos meios de informação -a TV, a escola, a internet.
Nelson Mandela e Hitler, Ceausescu e João Antônio, Zumbi e Kafka aparecem nos textos, ao mesmo tempo em que as referências à realidade imediata do desemprego e do tráfico de drogas. Um presente imutável e as evidências da mudança estão ali, em cada página, lado a lado. O livro está pronto, mas a história continua.


@ - coelhofsp@uol.com.br


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