São Paulo, sexta-feira, 16 de novembro de 2007

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CARLOS HEITOR CONY

Um dia para não esquecer

Recebi a notícia: os oficiais de Justiça estavam lacrando o edifício da Manchete

2. ago.2000 (quarta-feira) - Teria de acontecer. Ontem, estava na Academia, ouvindo a palestra do Celso Furtado sobre Eça de Queiroz, a segunda da série que iniciei na semana passada, quando um funcionário me entregou o bilhete: Beth, minha secretária, pedia que ligasse com urgência para ela. No celular, recebi a notícia: oficiais de Justiça estavam lacrando todo o edifício 804 da Manchete, inclusive a minha sala, que é no 11º andar.
Na véspera, o Jaquito me telefonara, pedindo que fosse conversar com ele. Cheguei atrasado e encontrei-o reunido com o grupo da casa. Ele nos comunicou que pedira autofalência, não tinha como tocar a concordata. Queria preservar um mínimo de patrimônio para garantir o pagamento das dívidas trabalhistas.
Que cada um de nós pensasse na própria família, nos filhos, e fosse à luta. Ele se comoveu, disse que saía da empresa, após 47 anos de trabalho, sem nada, pois tudo o que tinha era da empresa e seria somado à massa falida. Deu a palavra ao Caruso. Como advogado da firma, ele informou que dentro de três dias, na sexta-feira, o prédio seria lacrado.
Aconteceu algum imprevisto no processamento cartorial e ontem, três dias antes, na parte da tarde, um oficial de Justiça colocou na porta principal do prédio o papelzinho assinado pelo juiz da Vara de Falências e Concordatas. Era o fim.
Mal acabou a palestra na ABL fui para a Manchete, onde encontrei um clima de tragédia, grupos espalhados pelas calçadas, gente saindo com sacolas cheias de objetos pessoais, a maioria chorando.
Consegui subir com Edílson, os elevadores estavam parados, as luzes desligadas. Na minha sala, antiga sala do Juscelino e do dr. Albert Sabin, que a ocuparam durante anos, havia seguranças, o oficial de Justiça me esperando e a Beth completamente alucinada. Um lampião mal dava para iluminar o hall de entrada, impossível retirar minhas coisas pessoais.
Descemos no escuro, o oficial de Justiça muito gentil, tratando-me com o máximo de consideração. Iluminou com a sua lanterna a minha descida até o térreo. Na rua, a repórter de "O Dia" tentou uma entrevista, mas desconversei, dizendo que eu estava ali dando uma força à Beth.
Ajudei-a a levar seus livros e cadernos (ela está terminando o curso de jornalismo na Hélio Alonso). Em casa havia um recado da produção da Globo pedindo uma crônica para o programa da Ana Maria Braga de amanhã. Fui dormir tarde e, como sempre me acontece, deixei para mais tarde pensar em tudo.
Hoje, fui ao Conselho de Cultura e depois passei pela Manchete, onde assinei uma proposta para me sindicalizar e deixando-a com o Alvimar. Devido as minhas relações com a empresa, não penso em entrar na Justiça individualmente, mas em grupo. Pretendo fazer parte dos credores da massa falida, com a esperança de, daqui a cinco anos, mais ou menos, me habilitar a receber senão tudo, pelo menos alguma coisa do meu fundo de garantia. Não tenho a menor idéia do quanto e, sobretudo, do quando receber.
Comi uma pizza na lanchonete ao lado, esperei pelo síndico que presidirá a autofalência e marcara uma reunião conosco, mas ele não apareceu. Vim para casa e fui entrevistado para o Canal Futura, pela filha do Zé Rubem, Bia Corrêa do Lago, bonita e inteligente.
A casa ficou agitada: Beth, Flávia, uma equipe de cinco pessoas da TV, as duas meninas (Sacha e Natália), além de Edílson, Marcos, Rosa e Érika. O pessoal saiu daqui às 6 horas da tarde, pedi que Beth tirasse xerox da minha carteira profissional. E estou fazendo este registro.
Deveria falar sobre o clima de tragédia e pena que presenciei. Eu próprio me sinto amortecido, sem acreditar que tudo aquilo acabou.
Penso que remeti as impressões todas para a caverna mais funda da memória, mais cedo ou mais tarde conseguirei articular alguma coisa, expressando meu espanto, minha tristeza.
A decepção de ver um mundo colorido, alegre e despreocupado, depois de uma ruína gradual e dolorosa que já dura dois anos, fechar-se como um túmulo que sepulta fantasmas, alguns mortos (Adolpho, JK, Justino, Magalhães Jr.) e outros ainda vivos, nós todos. Sinto em cima de mim o gosto de terra e o cheiro de flores apodrecendo.


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