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CARLOS HEITOR CONY
Um dia para não esquecer
Recebi a notícia: os oficiais de Justiça estavam lacrando o edifício da Manchete
2. ago.2000 (quarta-feira) - Teria de acontecer. Ontem, estava na Academia, ouvindo a
palestra do Celso Furtado sobre Eça
de Queiroz, a segunda da série que
iniciei na semana passada, quando
um funcionário me entregou o bilhete: Beth, minha secretária, pedia
que ligasse com urgência para ela.
No celular, recebi a notícia: oficiais
de Justiça estavam lacrando todo o
edifício 804 da Manchete, inclusive
a minha sala, que é no 11º andar.
Na véspera, o Jaquito me telefonara, pedindo que fosse conversar
com ele. Cheguei atrasado e encontrei-o reunido com o grupo da casa.
Ele nos comunicou que pedira autofalência, não tinha como tocar a concordata. Queria preservar um mínimo de patrimônio para garantir o
pagamento das dívidas trabalhistas.
Que cada um de nós pensasse na
própria família, nos filhos, e fosse à
luta. Ele se comoveu, disse que saía
da empresa, após 47 anos de trabalho, sem nada, pois tudo o que tinha
era da empresa e seria somado à
massa falida. Deu a palavra ao Caruso. Como advogado da firma, ele informou que dentro de três dias, na
sexta-feira, o prédio seria lacrado.
Aconteceu algum imprevisto no
processamento cartorial e ontem,
três dias antes, na parte da tarde, um
oficial de Justiça colocou na porta
principal do prédio o papelzinho assinado pelo juiz da Vara de Falências
e Concordatas. Era o fim.
Mal acabou a palestra na ABL fui
para a Manchete, onde encontrei
um clima de tragédia, grupos espalhados pelas calçadas, gente saindo
com sacolas cheias de objetos pessoais, a maioria chorando.
Consegui subir com Edílson, os
elevadores estavam parados, as luzes desligadas. Na minha sala, antiga
sala do Juscelino e do dr. Albert Sabin, que a ocuparam durante anos,
havia seguranças, o oficial de Justiça
me esperando e a Beth completamente alucinada. Um lampião mal
dava para iluminar o hall de entrada,
impossível retirar minhas coisas
pessoais.
Descemos no escuro, o oficial de
Justiça muito gentil, tratando-me
com o máximo de consideração. Iluminou com a sua lanterna a minha
descida até o térreo. Na rua, a repórter de "O Dia" tentou uma entrevista, mas desconversei, dizendo que
eu estava ali dando uma força à Beth.
Ajudei-a a levar seus livros e cadernos (ela está terminando o curso
de jornalismo na Hélio Alonso). Em
casa havia um recado da produção
da Globo pedindo uma crônica para
o programa da Ana Maria Braga de
amanhã. Fui dormir tarde e, como
sempre me acontece, deixei para
mais tarde pensar em tudo.
Hoje, fui ao Conselho de Cultura e
depois passei pela Manchete, onde
assinei uma proposta para me sindicalizar e deixando-a com o Alvimar.
Devido as minhas relações com a
empresa, não penso em entrar na
Justiça individualmente, mas em
grupo. Pretendo fazer parte dos credores da massa falida, com a esperança de, daqui a cinco anos, mais ou
menos, me habilitar a receber senão
tudo, pelo menos alguma coisa do
meu fundo de garantia. Não tenho a
menor idéia do quanto e, sobretudo,
do quando receber.
Comi uma pizza na lanchonete ao
lado, esperei pelo síndico que presidirá a autofalência e marcara uma
reunião conosco, mas ele não apareceu. Vim para casa e fui entrevistado
para o Canal Futura, pela filha do Zé
Rubem, Bia Corrêa do Lago, bonita e
inteligente.
A casa ficou agitada: Beth, Flávia,
uma equipe de cinco pessoas da TV,
as duas meninas (Sacha e Natália),
além de Edílson, Marcos, Rosa e Érika. O pessoal saiu daqui às 6 horas da
tarde, pedi que Beth tirasse xerox da
minha carteira profissional. E estou
fazendo este registro.
Deveria falar sobre o clima de tragédia e pena que presenciei. Eu próprio me sinto amortecido, sem acreditar que tudo aquilo acabou.
Penso que remeti as impressões
todas para a caverna mais funda da
memória, mais cedo ou mais tarde
conseguirei articular alguma coisa,
expressando meu espanto, minha
tristeza.
A decepção de ver um mundo colorido, alegre e despreocupado, depois de uma ruína gradual e dolorosa que já dura dois anos, fechar-se
como um túmulo que sepulta fantasmas, alguns mortos (Adolpho,
JK, Justino, Magalhães Jr.) e outros
ainda vivos, nós todos. Sinto em cima de mim o gosto de terra e o cheiro de flores apodrecendo.
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