São Paulo, sábado, 16 de dezembro de 2006

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Senhor viagem

Em "Minhas Viagens com Heródoto", o jornalista e viajante polonês Ryszard Kapuscinski conta como o grego o ajudou a ver o mundo

Saurabh Das/Associated Press
Peregrina se banha nas águas do rio Ganges, na Índia, primeiro país visitado por Ryszard Kapuscinski


SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

O que um garoto polonês crescido durante a Segunda Guerra Mundial na maltratada Polônia poderia ter em comum com um outro, nascido por volta do ano 485 a. C., na colônia grega de Halicarnasso (na atual Turquia)?
Além do fato de serem curiosos e originários de lugares periféricos da época em que viveram, o mais inusitado é que, mesmo apartados por um imenso abismo de tempo, Ryszard Kapuscinski e Heródoto cresceram com as mesmas inquietações: viajar, ver o mundo e descrevê-lo. "Para quê?", pergunta o polonês à Folha. E responde: "Para que a memória do homem não se apague".
Em "Minhas Viagens com Heródoto - Entre a História e o Jornalismo", lançado agora no Brasil, Kapuscinski, 74, recorda algumas de suas inúmeras expedições pelo mundo.
Além da mala e do bloquinho, o escritor conta que sempre carregou consigo um velho exemplar amarelado de "História", o clássico de Heródoto que narra suas andanças pelo mundo mediterrâneo do Oriente Próximo. A obra é tida como fundadora da história como área de conhecimento específico, por não apenas relatar fatos mas elaborar reflexões filosóficas a partir deles. "Acho que, além de tudo isso, ele foi o primeiro repórter literário que existiu, pois partiu para olhar no olho pessoas que viviam em outros lugares e, depois, voltou para dizer como elas eram."
O escritor conta que o precioso volume foi um presente da redatora-chefe do jornal em que trabalhava, em Varsóvia, antes que ele embarcasse para sua primeira viagem internacional, em 1956, para a Índia.
Kapuscinski tinha então 23 anos, falava um inglês macarrônico e, na babel de cheiros, cores, línguas e costumes das ruas de Nova Déli, assustou-se com o comportamento servil das pessoas. "Eu tinha crescido num país pobre e comunista. E aprendido que todos os homens são iguais e irmãos, não podia aceitar que alguém me carregasse, colocasse comida no meu prato, por exemplo." Mas, quando percebeu que, ao se negar a aceitar aqueles serviços, estava quebrando a dinâmica local da sociedade, entendeu que o mundo era um pouco mais complicado do que ele pensava e que tinha que observá-lo com mais atenção.
"Comecei, então, a sentir uma afinidade muito grande com relação às culturas do Terceiro Mundo. Apesar de serem diferentes, aqueles países tinham em comum o mesmo cenário que eu via no lugar onde nasci, a Europa pobre, onde as crianças não comiam nem tinham escola."
Mesmo antes de pisar nos EUA e ter alguma idéia de como era o Ocidente, Kapuscinski rodou bastante. Depois, virou correspondente da Agência de Notícias da Polônia na África e foi enviado a vários países.
Passou a colaborar para publicações norte-americanas -"Time", "The New York Times", "The New Yorker"- e européias. Com o tempo, acumulou material de pesquisa para escrever seus livros.
Em "O Imperador", narrou a queda de Hailé Selassié, o legendário líder da Etiópia, em 1974. Em "Ébano - Minha Vida na África", resumiu os 40 anos de experiência pessoal naquele continente, com relatos de Angola, Gana, Nigéria, Tanzânia, Somália, Eritréia, Ruanda e outros. "Shah of Shas" tem a Revolução Iraniana de 1979 como pano de fundo, e "The World of Soccer" analisa a política de países africanos e latino-americanos por meio do futebol.
E como Heródoto o ajudou a observar os lugares por onde passou? "A principal lição de seus escritos é a certeza de que o mundo pode -e deve- ser descrito, mesmo levando em conta a subjetividade de quem conta uma história. Era um curioso obsessivo, e me contagiou", diz.

Tempo livre
Kapuscinski lamenta, entretanto, que seu precursor grego tenha tido, aparentemente, muito mais tranqüilidade e tempo livre do que ele para escrever. "Antigamente, um escritor podia deixar uma obra de cem volumes. Hoje, se ele faz meia dúzia de livros, está ótimo, pois o resto de seu tempo é tomado por viagens -para falar, promover suas próprias publicações- e pela constante demanda da sociedade para que comentemos o noticiário, os lançamentos, as guerras, o terror."
No dia em que conversou com a Folha, por exemplo, Kapuscinski contou que estava tentando dar um drible num jornalista espanhol que queria, a todo custo, que ele desse uma opinião a respeito de um livro recém-lançado sobre a Guerra Civil Espanhola. "Eu nem sei nada sobre esse tema", riu.
Mas o fato de os escritores participarem dos debates contemporâneos não seria positivo? "Sim, mas poucos realmente acrescentam alguma coisa, e não mudam em nada o rumo dos acontecimentos."

Brasil
A América Latina tem sido uma constante na agenda recente do escritor, que ministra cursos de jornalismo literário anualmente na Fundación Nuevo Periodismo, do colombiano Gabriel García Márquez.
Das passagens pelo Brasil, guarda duas em especial. A primeira foi nos anos 60, pouco depois da construção de Brasília. "Lembro de uma paisagem muito bonita, de construções imensas, mas de poucas pessoas na rua. Uma cidade difícil de andar a pé, porque não tinha calçadas", conta. A segunda, foi durante as eleições de 2002.
"Estava num hotel próximo à avenida Paulista quando foi anunciado o resultado. Achei a festa muito impressionante".

MINHAS VIAGENS COM HERÓDOTO
Autor:
Ryszard Kapuscinski
Tradução: Tomasz Barcinski
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 49 (305 págs.)


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