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O "escândalo' do padre Marcelo e a história da fé
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
²
Muita gente se escandaliza
com a figura do padre Marcelo
Rossi e sua "aeróbica do Senhor". De fato, um sacerdote
transformar-se em astro pop é
como se a água, em vez de virar
vinho, virasse coca-cola. Mas o
que fazer? São tempos de coca-
cola. Detesto o moralismo da
Igreja Católica, mas acho que
há muito moralismo contra o
padre Marcelo também.
Não entro na questão da empresa Terço Bizantino, oficialmente inativa, de que o padre é
sócio. A venda de medalhinhas,
terços e CDs religiosos nada
tem de espantoso. Mesmo na
catedral de São Pedro, o turista
encontra uma loja de suvenires. E o papa, ao que eu saiba,
também já gravou um CD. Se o
dinheiro supostamente arrecadado com a Terço Bizantino
vai todo para a igreja ou não,
eis um assunto que não me diz
respeito.
O "escândalo", entretanto,
não vem daí. O que mais choca
certas pessoas, católicas ou
não, é o comportamento apelativo, a euforia biônica do padre
que pula, a visível influência
que ele sofre de Xuxa e dos bispos da Record. Nesse capítulo,
tenho algo a dizer em sua defesa.
O nariz torcido diante das
apelações de alguns eclesiásticos não vem de agora. São Bernardo, no século 12, reprovava
os excessos decorativos nos capitéis das igrejas de seu tempo.
Esculturas de macacos, leões e
tigres encarapitavam-se nas
colunas das catedrais. "Tam
multa denique tamque mira
diversarum formarum ubique
varietas apparet, ut magis legere libeat in marmoribus quam
in codicibus, totumque diem
occupare singula ista mirando
quam in lege Dei meditando."
Os próprios vitrais góticos,
provocando um maravilhamento sensorial inédito para a
época, não seriam uma distração face ao recolhimento e à
austeridade que supomos característico de uma fé genuína?
Bem, pode-se dizer dos vitrais
que pelo menos eram obras de
arte, coisa que o CD de Marcelo
Rossi não é. Admito. Mas vai
ver que, na época, os vitrais nada tivessem de "artístico". Sua
mensagem era explícita, suas
cores e motivos visavam, possivelmente, menos o efeito estético desinteressado e mais a pura
propaganda.
É que nós, no século 20, conhecemos coisas muito mais
apelativas e formas de comunicação muito mais eficazes do
ponto de vista publicitário. As
críticas a uma apelação do século 12 deixam, assim, de fazer
sentido; podemos fruir, sem ingenuidades de aldeão, a pura
beleza artística do vitral. E a
falsa arte, a apelação barata,
talvez tenham isto de bom:
"criam" novos monumentos
estéticos, a saber, os dos séculos
anteriores, agora obsoletos do
ponto de vista da técnica propagandística.
Pulando e dançando, o padre
Marcelo Rossi apenas adapta à
linguagem contemporânea
aquilo que antes se bastava
com toques de sino, camadas
de ouro, estolas bordadas, sons
de órgão e nuvens de incenso.
Pode-se argumentar que seus
frenesis desviam o fiel da "verdadeira mensagem" do catolicismo. Mas a dimensão do frenesi, ou pelo menos da festa, está presente em quase todo culto
religioso, que não se confunde
com o espaço mais íntimo da
meditação e da vida contemplativa. Arrisco dizer que nada
me parece tão próximo da "verdadeira mensagem" do catolicismo do que a mistura específica que produziu de sedução
sensorial e de elevação religiosa. Junta- se o amor ao luxo
com o elogio da pobreza, como
no Carnaval carioca (descontados alguns excessos deste, é claro), ao passo que o protestantismo retruca com o amor à riqueza e o elogio da austeridade.
Claro que essa conciliação dos
sentidos e do espírito não se faz
sem divisões internas; vimos o
caso de são Bernardo, que Umberto Eco cita em seu livro
"Apocalípticos e Integrados"
(ed. Perspectiva). No quarto volume da "História da Vida Privada no Brasil", que acaba de
sair pela Companhia das Letras, a pesquisadora Maria Lúcia Montes descreve as reações
do clero aos excessos que se cometiam a pretexto de festas religiosas populares.
Em 1941, o episcopado de Belo
Horizonte publicava resoluções
deste teor: "determinamos que
no mês de Maria atenda-se
mais à piedade que às pompas
exteriores, eliminando-se as ornamentações mundanas e as
iluminações perigosas... haja
todo cuidado em evitar os exageros... devem ser evitados os
atos muito demorados ou feitos
com precipitação e sem aquela
gravidade própria da casa de
Deus. Deve ser evitada a multiplicação desnecessária de altares, imagens ou associações religiosas...".
Diz-se que a Igreja Católica
perdeu muitos de seus fiéis porque passou a se interessar demais pelas coisas terrenas (lutas
populares, miséria, política),
descuidando de seu papel espiritual. O argumento é claramente de direita. Como se, antes da Teologia da Libertação, a
igreja não se ocupasse de política...
Acho até o contrário. Talvez o
catolicismo tenha perdido público exatamente porque ficou
pouco terreno, e não terreno demais. Os bispos da Record não
fazem outra coisa senão prometer a felicidade aqui e agora. O
catolicismo se fortalece para os
que, sem trocadilho, querem
terra para trabalhar, e não céu
para morrer.
Por certo, a esquerda eclesiástica tem pouco a admirar no
padre Marcelo. Sua animação
despolitiza. A mensagem utópica do cristianismo, a luta que se
desenvolve pela justiça social, e
mais recentemente pela simples
justiça -justiça comum contra
matadores profissionais, por
exemplo-, está muito distante
da ginástica burguesa, do atletismo bizantino, do iê-iê-iê carismático de Rossi. Mas também não sei o que o clero tem a
ver com a privatização da Vale
do Rio Doce e a condenou.
Se o padre Marcelo não existisse, seus adeptos estariam provavelmente vendo TV em casa
ou aderindo a alguma igreja
evangélica; acho difícil que fossem mobilizados para as lutas
sociais. Seu estilo responde a
outras necessidades, de um outro público, com o qual aliás
não simpatizo; mas na igreja,
historicamente, sempre coube
tudo. Pois se trata de uma instituição terrena, exposta desde
sempre à moda, aos interesses
materiais, às conveniências políticas e sobretudo às necessidades de sua própria sobrevivência.
Prefiro a igreja progressista;
mas pelo que tem de progressista, não por ser igreja. A tentativa de, no jargão de esquerda,
fazer da organização católica
um grande "aparelho" não deu
certo; foi esmagada pelo papa.
Minha tendência é lamentar esse fato. Mas dizer que, com isso
e com a ascensão dos carismáticos, perde-se o "real" significado do catolicismo, para mim, é
má-fé ou excesso de credulidade.
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