São Paulo, quarta, 16 de dezembro de 1998

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O "escândalo' do padre Marcelo e a história da fé

MARCELO COELHO

da Equipe de Articulistas
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Muita gente se escandaliza com a figura do padre Marcelo Rossi e sua "aeróbica do Senhor". De fato, um sacerdote transformar-se em astro pop é como se a água, em vez de virar vinho, virasse coca-cola. Mas o que fazer? São tempos de coca- cola. Detesto o moralismo da Igreja Católica, mas acho que há muito moralismo contra o padre Marcelo também.
Não entro na questão da empresa Terço Bizantino, oficialmente inativa, de que o padre é sócio. A venda de medalhinhas, terços e CDs religiosos nada tem de espantoso. Mesmo na catedral de São Pedro, o turista encontra uma loja de suvenires. E o papa, ao que eu saiba, também já gravou um CD. Se o dinheiro supostamente arrecadado com a Terço Bizantino vai todo para a igreja ou não, eis um assunto que não me diz respeito.
O "escândalo", entretanto, não vem daí. O que mais choca certas pessoas, católicas ou não, é o comportamento apelativo, a euforia biônica do padre que pula, a visível influência que ele sofre de Xuxa e dos bispos da Record. Nesse capítulo, tenho algo a dizer em sua defesa.
O nariz torcido diante das apelações de alguns eclesiásticos não vem de agora. São Bernardo, no século 12, reprovava os excessos decorativos nos capitéis das igrejas de seu tempo. Esculturas de macacos, leões e tigres encarapitavam-se nas colunas das catedrais. "Tam multa denique tamque mira diversarum formarum ubique varietas apparet, ut magis legere libeat in marmoribus quam in codicibus, totumque diem occupare singula ista mirando quam in lege Dei meditando."
Os próprios vitrais góticos, provocando um maravilhamento sensorial inédito para a época, não seriam uma distração face ao recolhimento e à austeridade que supomos característico de uma fé genuína?
Bem, pode-se dizer dos vitrais que pelo menos eram obras de arte, coisa que o CD de Marcelo Rossi não é. Admito. Mas vai ver que, na época, os vitrais nada tivessem de "artístico". Sua mensagem era explícita, suas cores e motivos visavam, possivelmente, menos o efeito estético desinteressado e mais a pura propaganda.
É que nós, no século 20, conhecemos coisas muito mais apelativas e formas de comunicação muito mais eficazes do ponto de vista publicitário. As críticas a uma apelação do século 12 deixam, assim, de fazer sentido; podemos fruir, sem ingenuidades de aldeão, a pura beleza artística do vitral. E a falsa arte, a apelação barata, talvez tenham isto de bom: "criam" novos monumentos estéticos, a saber, os dos séculos anteriores, agora obsoletos do ponto de vista da técnica propagandística.
Pulando e dançando, o padre Marcelo Rossi apenas adapta à linguagem contemporânea aquilo que antes se bastava com toques de sino, camadas de ouro, estolas bordadas, sons de órgão e nuvens de incenso.
Pode-se argumentar que seus frenesis desviam o fiel da "verdadeira mensagem" do catolicismo. Mas a dimensão do frenesi, ou pelo menos da festa, está presente em quase todo culto religioso, que não se confunde com o espaço mais íntimo da meditação e da vida contemplativa. Arrisco dizer que nada me parece tão próximo da "verdadeira mensagem" do catolicismo do que a mistura específica que produziu de sedução sensorial e de elevação religiosa. Junta- se o amor ao luxo com o elogio da pobreza, como no Carnaval carioca (descontados alguns excessos deste, é claro), ao passo que o protestantismo retruca com o amor à riqueza e o elogio da austeridade.
Claro que essa conciliação dos sentidos e do espírito não se faz sem divisões internas; vimos o caso de são Bernardo, que Umberto Eco cita em seu livro "Apocalípticos e Integrados" (ed. Perspectiva). No quarto volume da "História da Vida Privada no Brasil", que acaba de sair pela Companhia das Letras, a pesquisadora Maria Lúcia Montes descreve as reações do clero aos excessos que se cometiam a pretexto de festas religiosas populares.
Em 1941, o episcopado de Belo Horizonte publicava resoluções deste teor: "determinamos que no mês de Maria atenda-se mais à piedade que às pompas exteriores, eliminando-se as ornamentações mundanas e as iluminações perigosas... haja todo cuidado em evitar os exageros... devem ser evitados os atos muito demorados ou feitos com precipitação e sem aquela gravidade própria da casa de Deus. Deve ser evitada a multiplicação desnecessária de altares, imagens ou associações religiosas...".
Diz-se que a Igreja Católica perdeu muitos de seus fiéis porque passou a se interessar demais pelas coisas terrenas (lutas populares, miséria, política), descuidando de seu papel espiritual. O argumento é claramente de direita. Como se, antes da Teologia da Libertação, a igreja não se ocupasse de política...
Acho até o contrário. Talvez o catolicismo tenha perdido público exatamente porque ficou pouco terreno, e não terreno demais. Os bispos da Record não fazem outra coisa senão prometer a felicidade aqui e agora. O catolicismo se fortalece para os que, sem trocadilho, querem terra para trabalhar, e não céu para morrer.
Por certo, a esquerda eclesiástica tem pouco a admirar no padre Marcelo. Sua animação despolitiza. A mensagem utópica do cristianismo, a luta que se desenvolve pela justiça social, e mais recentemente pela simples justiça -justiça comum contra matadores profissionais, por exemplo-, está muito distante da ginástica burguesa, do atletismo bizantino, do iê-iê-iê carismático de Rossi. Mas também não sei o que o clero tem a ver com a privatização da Vale do Rio Doce e a condenou.
Se o padre Marcelo não existisse, seus adeptos estariam provavelmente vendo TV em casa ou aderindo a alguma igreja evangélica; acho difícil que fossem mobilizados para as lutas sociais. Seu estilo responde a outras necessidades, de um outro público, com o qual aliás não simpatizo; mas na igreja, historicamente, sempre coube tudo. Pois se trata de uma instituição terrena, exposta desde sempre à moda, aos interesses materiais, às conveniências políticas e sobretudo às necessidades de sua própria sobrevivência.
Prefiro a igreja progressista; mas pelo que tem de progressista, não por ser igreja. A tentativa de, no jargão de esquerda, fazer da organização católica um grande "aparelho" não deu certo; foi esmagada pelo papa. Minha tendência é lamentar esse fato. Mas dizer que, com isso e com a ascensão dos carismáticos, perde-se o "real" significado do catolicismo, para mim, é má-fé ou excesso de credulidade.



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