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CINEMA
"Máfia no Divã" resgatou sabedoria do público
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Mil novecentos e noventa e nove, já se disse, foi o ano de "Matrix". Ou de "A Bruxa de Blair".
Há quem prefira "O Clube da Luta". É normal que se coloquem as
coisas nesses termos, já que esses
filmes foram sucessos que começaram e terminaram na mídia.
O sucesso de "A Máfia no Divã",
ao contrário, começou e terminou no público. Se fez no chamado boca a boca; deve muito pouco
a experts de qualquer categoria.
Experiência pessoal: tentei assisti-lo quando estava ainda nas
primeiras semanas de exibição,
numa das salas do Estúdio Alvorada. A sessão estava lotada. Impossível vê-lo na sessão seguinte,
pois dividia o cartaz com um outro filme.
Algum tempo depois, "A Máfia
no Divã" tinha sido retirado do
Estúdio Alvorada, colocado no
Astor, cinema da mesma companhia (Alvorada), no mesmo local
(Conjunto Nacional), mas uma
sala bem maior, com quase mil
lugares e exibido em todas as sessões. Não estava inteiramente lotada, mas quase.
Ser grande destaque de bilheteria não diz muito sobre um filme.
Objetivamente, deveria ser importante apenas para seus acionistas ou concorrentes -enfim,
uma informação estritamente
corporativa. Mas hoje os lançamentos de cinema são atrelados a
poderosos esquemas publicitários. O hábito de ir ao cinema foi
substituído por obrigações pontuais.
Essa é, em suma, a era do blockbuster: lançamentos gigantes,
centenas de cópias (milhares, nos
EUA) e circulação rapidíssima da
mercadoria (o filme e badulaques). Em poucas semanas, com
raras exceções, seu poder de fogo
deve estar consumido. É a simultaneidade.
É o marketing, também. Em vez
do boca a boca, existe o silêncio.
Não se diz mais "vá ver tal filme, é
legal". Cabe à mídia esse papel,
num sistema de antecipação:
anuncia-se a filmagem, divulga-se
o orçamento, exibe-se o "making
of", publicam-se entrevistas com
os atores. Enfim, criam-se expectativas que pouco têm a ver com o
cinema propriamente dito.
Exemplo: o interesse por "A
Bruxa de Blair" é apriorístico,
nossa curiosidade é mobilizada
não pelo filme, mas por seu entorno. Não é algo inédito. Mas aquilo
que em Hitchcock, por exemplo,
era intuição genial, hoje tornou-se ciência eficaz.
Já "A Máfia no Divã" resgata algo que parecia desaparecido: a velha sabedoria do público. Pressionado por esquemas publicitários,
o espectador de hoje raramente
escolhe o que vai ver. Responde à
publicidade, dizendo-lhe sim ou
não. Raramente tem tempo de dizer "vá ver tal filme" ao amigo.
Quando o encontra, o filme já
saiu de cartaz.
"A Máfia no Divã" entra nessa
festa como um ato falho do velho
sistema. Como deveria ser anunciado? Os programetes da TV por
assinatura, por exemplo, poderiam resumi-lo ao encontro entre
Robert De Niro e Billy Crystal.
Mas, embora os dois estejam
muito bem no filme, não é isso o
que seduz o espectador na comédia de Harold Ramis.
O que ele explora é, antes de tudo, a hipótese de contato entre
um gângster (De Niro) e um terapeuta (Crystal), com todos os
mal-entendidos que podem se
originar de um encontro entre
duas formas inteiramente diversas de entender o mundo. Duas
formas de que cada um de nós
participa. Podemos ser boçais e
machistas como o gângster, ou
compreensivos como o terapeuta,
conforme a ocasião.
Nada revolucionário, em princípio. A sabedoria do filme de Ramis é da ordem do classicismo, isto é, não aspira à originalidade,
mas a recolher aspectos dispersos
do mundo e reordená-los de forma inesperada.
Ao contrário dos terapeutas de
Woody Allen, o de Ramis é
abruptamente tirado de seu paraíso artificial -paraíso da interpretação-, onde é onipotente,
para o mundo da ação, com todas
as suas vicissitudes. Já o gângster
é deslocado ao mundo da reflexão
e do autoconhecimento -o que,
em poucas palavras, significa participar de um universo de incerteza e dúvida.
Harold Ramis consegue neste
filme aproximar dois modos dominadores e de algum modo inumanos de ser e mostrá-los em sua
vulnerabilidade.
Mostrá-los em sua humanidade, isto é, nessa precariedade que,
por profissão e crença, cada um
deles deve esconder.
É também um encontro entre o
"sujeito suposto saber", como
Jacques Lacan definiu o psicanalista, e o "sujeito suposto poder",
como se poderia definir, paradoxalmente, o gângster. O saber é o
poder do terapeuta e a ruína do
gângster. E vice-versa.
Ao mostrá-los tão "supostos",
Ramis fez um filme memorável.
Sua aceitação e sucesso mostram
que a cultura cinematográfica está, de certa forma, mais viva do
que parece e menos sujeita à oposição dilacerante entre "blockbuster" e "filme de arte". Merece ser
lembrado não como "fenômeno",
não pelo "gênio", mas como, talvez, o filme mais divertido e um
dos mais inteligentes que passaram em 1999.
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