São Paulo, Segunda-feira, 17 de Janeiro de 2000


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CINEMA
"Máfia no Divã" resgatou sabedoria do público

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Mil novecentos e noventa e nove, já se disse, foi o ano de "Matrix". Ou de "A Bruxa de Blair". Há quem prefira "O Clube da Luta". É normal que se coloquem as coisas nesses termos, já que esses filmes foram sucessos que começaram e terminaram na mídia.
O sucesso de "A Máfia no Divã", ao contrário, começou e terminou no público. Se fez no chamado boca a boca; deve muito pouco a experts de qualquer categoria.
Experiência pessoal: tentei assisti-lo quando estava ainda nas primeiras semanas de exibição, numa das salas do Estúdio Alvorada. A sessão estava lotada. Impossível vê-lo na sessão seguinte, pois dividia o cartaz com um outro filme.
Algum tempo depois, "A Máfia no Divã" tinha sido retirado do Estúdio Alvorada, colocado no Astor, cinema da mesma companhia (Alvorada), no mesmo local (Conjunto Nacional), mas uma sala bem maior, com quase mil lugares e exibido em todas as sessões. Não estava inteiramente lotada, mas quase.
Ser grande destaque de bilheteria não diz muito sobre um filme. Objetivamente, deveria ser importante apenas para seus acionistas ou concorrentes -enfim, uma informação estritamente corporativa. Mas hoje os lançamentos de cinema são atrelados a poderosos esquemas publicitários. O hábito de ir ao cinema foi substituído por obrigações pontuais.
Essa é, em suma, a era do blockbuster: lançamentos gigantes, centenas de cópias (milhares, nos EUA) e circulação rapidíssima da mercadoria (o filme e badulaques). Em poucas semanas, com raras exceções, seu poder de fogo deve estar consumido. É a simultaneidade.
É o marketing, também. Em vez do boca a boca, existe o silêncio. Não se diz mais "vá ver tal filme, é legal". Cabe à mídia esse papel, num sistema de antecipação: anuncia-se a filmagem, divulga-se o orçamento, exibe-se o "making of", publicam-se entrevistas com os atores. Enfim, criam-se expectativas que pouco têm a ver com o cinema propriamente dito.
Exemplo: o interesse por "A Bruxa de Blair" é apriorístico, nossa curiosidade é mobilizada não pelo filme, mas por seu entorno. Não é algo inédito. Mas aquilo que em Hitchcock, por exemplo, era intuição genial, hoje tornou-se ciência eficaz.
Já "A Máfia no Divã" resgata algo que parecia desaparecido: a velha sabedoria do público. Pressionado por esquemas publicitários, o espectador de hoje raramente escolhe o que vai ver. Responde à publicidade, dizendo-lhe sim ou não. Raramente tem tempo de dizer "vá ver tal filme" ao amigo. Quando o encontra, o filme já saiu de cartaz.
"A Máfia no Divã" entra nessa festa como um ato falho do velho sistema. Como deveria ser anunciado? Os programetes da TV por assinatura, por exemplo, poderiam resumi-lo ao encontro entre Robert De Niro e Billy Crystal.
Mas, embora os dois estejam muito bem no filme, não é isso o que seduz o espectador na comédia de Harold Ramis.
O que ele explora é, antes de tudo, a hipótese de contato entre um gângster (De Niro) e um terapeuta (Crystal), com todos os mal-entendidos que podem se originar de um encontro entre duas formas inteiramente diversas de entender o mundo. Duas formas de que cada um de nós participa. Podemos ser boçais e machistas como o gângster, ou compreensivos como o terapeuta, conforme a ocasião.
Nada revolucionário, em princípio. A sabedoria do filme de Ramis é da ordem do classicismo, isto é, não aspira à originalidade, mas a recolher aspectos dispersos do mundo e reordená-los de forma inesperada.
Ao contrário dos terapeutas de Woody Allen, o de Ramis é abruptamente tirado de seu paraíso artificial -paraíso da interpretação-, onde é onipotente, para o mundo da ação, com todas as suas vicissitudes. Já o gângster é deslocado ao mundo da reflexão e do autoconhecimento -o que, em poucas palavras, significa participar de um universo de incerteza e dúvida.
Harold Ramis consegue neste filme aproximar dois modos dominadores e de algum modo inumanos de ser e mostrá-los em sua vulnerabilidade.
Mostrá-los em sua humanidade, isto é, nessa precariedade que, por profissão e crença, cada um deles deve esconder.
É também um encontro entre o "sujeito suposto saber", como Jacques Lacan definiu o psicanalista, e o "sujeito suposto poder", como se poderia definir, paradoxalmente, o gângster. O saber é o poder do terapeuta e a ruína do gângster. E vice-versa.
Ao mostrá-los tão "supostos", Ramis fez um filme memorável. Sua aceitação e sucesso mostram que a cultura cinematográfica está, de certa forma, mais viva do que parece e menos sujeita à oposição dilacerante entre "blockbuster" e "filme de arte". Merece ser lembrado não como "fenômeno", não pelo "gênio", mas como, talvez, o filme mais divertido e um dos mais inteligentes que passaram em 1999.


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