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"DIÁRIOS DE MOTOCICLETA"
Filme consegue mostrar por que o Guevara ainda é um mito da cultura popular mundial
O Che de Walter está na garupa de nossa moto
CONTARDO CALLIGARIS
COLUNISTA DA FOLHA
"Diários de Motocicleta",
de Walter Salles, me surpreendeu como uma interpretação, verdadeira e comovedora, da
história de minha geração.
Assisti a "Diários" em circunstâncias que vale a pena mencionar, pois, de uma certa forma, elas
realçaram o impacto do filme.
Na semana passada, Walter
passou rapidamente por Nova
York; devia visionar a cópia destinada à primeira apresentação pública, no Festival de Sundance. Ele
estava a caminho de Cuba, onde
queria mostrar ao menos alguns
trechos a Alberto Granado (o
companheiro do Che durante a
viagem pela América Latina narrada no filme). De lá, Walter voltaria para Toronto, no Canadá
(onde está preparando sua próxima filmagem), e, poucos dias depois, iria para Sundance. Eu, naquele dia, estava fazendo minha
mala para vir a São Paulo.
Numa pequena sala de projeção
de um estúdio da rua 54, assistimos ao filme, que, aliás, desde então, cresce na memória. Talvez
contribua à sua força o fato de que
a história é narrada com extrema
simplicidade: os transtornos de
uma filmagem árdua, pelas estradas da América Latina, subindo
da Argentina até o Peru, tornaram-se lucros, pois impuseram
um estilo despojado e direto.
Os fatos são conhecidos: em
1951, dois jovens estudantes lépidos e, quem sabe, um pouco folgados, saem de Buenos Aires a
bordo de uma moto com vontade
de viver uma aventura e conhecer
o continente sul-americano. A
viagem os transforma. Diante de
nossos olhos, Alberto e Ernesto,
sem bifes psicológicos ou ideológicos, descobrem a injustiça do
mundo e a chance de dar um sentido à sua própria extraordinária
liberdade. Numa cena quase conclusiva do filme (que não quero
descrever para deixar ao espectador futuro a chance de vivê-la
com toda a intensidade), o jovem
Che decide, ao risco de sua vida,
levar seu corpo e sua aventura do
lado dos deserdados.
Ideal Guevara
Segundo uma pesquisa que li algum tempo atrás, o Che com sua
boina é uma das imagens mais reconhecíveis de nossos tempos, se
não a mais reconhecível. O pôster
do herói revolucionário enfeitou e
segue enfeitando quartos de estudantes pelo mundo afora, sem falar das camisetas, das xícaras, das
capas de caderno e mesmo dos biquínis. Sobretudo hoje, em sua
grande maioria, os jovens que escolhem Ernesto Che Guevara como inspirador de seu dia a dia não
são leninistas e discordam de
muitas das idéias que levaram o
Che para Cuba, para Angola e para sua execução na Bolívia.
Como se explica então que Che
Guevara tenha se tornado e continue sendo um mito da cultura popular mundial, uma espécie de estrela do cinema-realidade da história e da vida?
O filme de Walter responde perfeitamente a essa pergunta. O segredo do extraordinário apelo
exercido pela figura do Che é revelado (e talvez esteja mesmo) naquela viagem que começou com a
saída de Buenos Aires na garupa
da moto de Alberto. Pois, naquela
viagem, formou-se um homem
que quis (e por isso pagou o preço
que sabemos) conciliar uma sede
intransigente de liberdade com a
necessidade de uma escolha política radical e também intransigente.
Por isso, já nos anos 60, o Che
era um ícone de ambos os lados
do Atlântico, uma espécie de ponte entre a contracultura americana e o engajamento do maio francês e europeu: mistura de Jack Kerouac com Daniel Cohn-Bendit
em seus dias melhores e mais raivosos. Ele era o ideal de uma vida
em que a exigência de justiça e
mesmo de revolução não contradizia a decisão (de uma certa forma, festiva) de encarar a existência como uma aventura.
Certo, esse ideal assombrou os
anos 70: pensavam em Guevara
os jovens europeus que, naquela
época, escolheram a luta armada
e acabaram massacrando inocentes pelas ruas da Europa. Mas,
apesar dessa década triste, o ideal
Guevara nunca deixou em paz os
homens e as mulheres de minha
geração, cronológica e política.
Ele ainda funciona, hoje, como
um lembrete, às vezes amargo.
Uma geração se interroga
Inevitavelmente, saí pensativo
daquela sala da rua 54. Na calçada
gélida, com Walter, ficamos batendo os pés no chão pelo frio, cada um expondo rapidamente o
calendário das viagens e os projetos em curso, para ver se e quando
a gente teria uma chance de encontrar-se novamente. Parecia-me, de fato, que estávamos ambos
tentando fazer as contas do que
sobrou de duas paixões que, bem
ou mal, dão sentido à minha vida
e, acredito, também à dele (e à de
muitos outros) -duas paixões
que o jovem Che, naquela viagem,
conseguiu juntar: a inquieta vontade de manter o pé na estrada e a
decisão de servir causas justas.
Mais duas observações.
1) Como quase todos sabem, a
moto de Che e Alberto morreu no
caminho, e grandíssima parte da
viagem aconteceu a pé e de carona. Mas é bem-vindo que tanto o
diário escrito por Guevara quanto
o filme tenham por título: "Diários de Motocicleta". Os motoqueiros sabem disso: de todos os
meios modernos de locomoção, a
moto é a que mais oferece a sensação (ou a ilusão) de uma liberdade absoluta.
2) Talvez "Diários de Motocicleta" seja o melhor filme de Walter
Salles. De qualquer forma, para
quem segue o percurso de sua
obra, o filme é um momento crucial de reflexão, por assim dizer,
autobiográfica. "Central do Brasil" e "Abril Despedaçado" são
ambos filmes sobre a outra margem do rio, onde vivem os deserdados da Terra. Agora Walter Salles conseguiu (ou precisou, tanto
faz) narrar a história de alguém
que, sem perder a ternura e a alegria da estrada, decidiu atravessar
o rio.
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