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MARCELO COELHO
Manuel Bandeira por ele mesmo
É como se a própria agressividade da dicção tornasse mais nua a intuição íntima do autor
TEM O ar de uma pequena edição de luxo, com a capa dura e
o título de cada poema impresso em tinta vermelha, a antologia de Manuel Bandeira que a Cosacnaify acaba de lançar. Trata-se da
reedição de um volume lançado em
1955 pelo Ministério da Educação e
Cultura, "50 poemas de Manuel
Bandeira escolhidos pelo autor".
Só que agora vem junto um CD,
com a voz do próprio poeta interpretando clássicos como "Vou-me Embora pra Pasárgada" e "Evocação do
Recife". O público tem acesso, desse
modo, ao conteúdo integral dos discos que Manuel Bandeira gravou para o antigo selo "Festa", de Irineu
Garcia, que produziu uma série de
registros de poetas brasileiros declamando seus próprios versos.
O CD que vem encartado neste livro não se sobrepõe a "O Poeta em
Botafogo", outro registro de Manuel
Bandeira lendo seus poemas, feito
pelo amigo Lauro Moreira em 1967.
É um choque ouvir a voz de Manuel Bandeira pela primeira vez. Ele
próprio confessava numa crônica,
citada no posfácio da edição: "Pessoalmente, sinto-me horrorizado de
minha própria voz gravada: acho-a
dura, malacostrácea, antipática. Será possível que eu fale assim?"
"Malacostrácea" se refere à classe
dos caranguejos, camarões e lagostas, e, pensando bem, não apenas a
voz, mas também o perfil de Manuel
Bandeira, com os dentes salientes, o
nariz em curva, os grandes óculos,
tem algo de agressivo e de preênsil.
A exemplo do "cacto" daquele seu
poema famoso, o timbre de Manuel
Bandeira é sem dúvida "áspero, intratável", como observam Augusto
Massi e Carlito Azevedo no posfácio
da antologia.
Mas, conforme vamos ouvindo, a
"feiúra" da voz se harmoniza com o
conteúdo dos poemas e participa do
mesmo efeito de estranhamento e
simplicidade que está presente em
tantas páginas de Manuel Bandeira.
Penso, por exemplo, em "Namorados": "O rapaz chegou-se para junto da moça e disse:/ -Antônia, ainda
não me acostumei com o seu corpo,
com a sua cara.// A moça olhou de
lado e esperou.// -Você não sabe
quando a gente é criança e vê de repente uma lagarta listada?// A moça
se lembrava:/ -A gente fica olhando...// A meninice brincou de novo
nos olhos dela.// O rapaz prosseguiu
com muita doçura:/ -Antônia, você
parece uma lagarta listada.//A moça
arregalou os olhos, fez exclamações.// O rapaz concluiu:/ -Antônia, você é engraçada! Você parece
louca".
Em outros poemas, Bandeira dizia
que o porquinho-da-índia que ganhara de presente aos seis anos de
idade tinha sido sua primeira namorada; ou que, vendo uma pequena
aranha no teto, quis beijá-la.
Tudo poderia passar, à primeira
vista, por um simples gesto de libertação poética frente às convenções
românticas e parnasianas. Mas o
que fica dessas comparações surpreendentes é sobretudo um movimento de ternura enorme, e que a
voz do poeta justamente vem livrar
de toda concessão sentimental.
É como se a própria agressividade
da dicção tornasse mais frágil, mais
nua a intuição íntima do autor. É
aquilo, aquilo mesmo: Antônia de
fato despertava no rapaz a impressão de ser uma lagarta listada, e se
ele diz que ainda não se acostumou
"com o seu corpo, com a sua cara",
alguma coisa de muito secreto e de
muito real foi expresso ali.
Não o mero embevecimento diante da beleza da namorada, mas a incredulidade de estar amando, de ter,
digamos, um outro bicho diante de
si. E quando se ouve Bandeira declamar a "Evocação do Recife", a pontuação, as pausas que o autor impõe
aos próprios versos têm também esse efeito de surpresa súbita diante
das coisas que aparecem sem motivo, se incendeiam e se vão.
Sem contar que, ao ouvir os poemas, sente-se com mais vivacidade a
importância que tinham, para Bandeira, as vozes, os pregões, as falas do
passado. É uma poesia feita de memória auditiva e impressões visuais:
"De repente/ nos longes da noite/
um sino/ Uma pessoa grande dizia:/
Fogo em Santo Antônio!/ Outra
contrariava: São José!"
Essa vida de infância, "com uma
porção de coisas que eu não entendia bem", era feita de alaridos, rumores e conversas. Tudo seria menos real, menos vivo, se a voz de Manuel Bandeira tivesse um timbre
melodioso e cultivado.
Nas dissonâncias e tons metálicos
da gravação, o passado do poeta volta com tudo o que tinha de estranho
e de maravilhoso da perspectiva de
uma criança; e, ao mesmo tempo,
com a consciência do que há de irrecuperável, de perdido para quem escreve ou escuta agora.
coelhofsp@uol.com.br
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