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CONTARDO CALLIGARIS
Um "custo Brasil" a mais
Leio na imprensa americana
uma história de corrupção. O superintendente das escolas de
Lynn, Massachusetts, é acusado
de ter promovido indevidamente
sua própria mulher, empregado
seu advogado pessoal sem licitação e outras coisas parecidas. Numa outra cidade, uma figura análoga gastou US$ 600 mil para consultorias não muito bem definidas e, sobretudo, em parte efetuadas pela sua irmã.
A corrupção brasileira e a americana não são muito diferentes:
banalidade e universalidade da
mesquinhez.
Mas há uma diferença notável
entre os relatos de corrupções tão
parecidos. Os relatos americanos
(tanto na imprensa quanto nas
conversas de bar) são factuais e
pouco indignados. É muito raro
que eles sejam acompanhados por
considerações gerais sobre a malvadeza humana, e é impensável
que o acontecido seja atribuído a
algum traço do suposto caráter
americano. A caricatura nacional
não é nunca invocada como explicação.
Os relatos brasileiros, ao contrário, assumem um tom autoflagelador. O pior nos é reservado por
estarmos no Brasil e sermos brasileiros: "Meus irmãos, somos sem-vergonha, malandros, aproveitadores etc.". Não que o Brasil seja
só isso, mas o que há de ruim em
nosso destino é o preço que pagamos por estarmos respirando ares
culturalmente mefíticos no sovaco
desse gigante.
Pelo mundo afora, todos indivíduos, grupos, famílias, sociedades
sofremos de passivos herdados. É
ótimo investigar esses passivos,
para melhor ultrapassá-los. Essa
é, por exemplo, uma das funções
de qualquer psicanálise. Mas não
seria preocupante se, cada vez que
eu fizesse uma besteira, me consolasse e desculpasse alegando meu
"custo Contardo"? "Oh! Não paguei impostos? É "custo Contardo", sabem como é, minha família
nunca gostou mesmo."
Em suma, certamente há um
"custo Brasil", ou seja, uma série
de dificuldades que devemos à
história do país. Mas há também
um "custo Brasil" suplementar e
talvez mais oneroso, que é um
efeito retórico.
O Brasil, por exemplo, rouba a
cena de nossas narrativas. Sinto
falta de histórias que sejam de
amor, de ódio, de aventura ou
simplesmente de vida e nas quais
o Brasil não seja um protagonista
sorrateiro, mas sempre crucial. Será que é possível se apaixonar na
Lapa, transar nos motéis da marginal, jantar no edifício Itália,
descer para Santos num domingo,
sem que o mau governo, a injustiça social, os problemas do trânsito, o passado bandeirante, os restos da escravatura e todos os traços da identidade nacional sejam
convocados para contar, legitimar e justificar a história?
Esse "custo Brasil" retórico empobrece também nossos esforços
de compreensão. Ele induz à preguiça do pensamento e inibe a
ação. Pouco adianta dar respostas
concretas para os problemas que
nos assolam, pois a causa do que
não funciona é sempre mais geral
e, por isso, está fora do alcance.
Por exemplo, imaginemos que a
produtividade brasileira esteja
baixa. Poderemos reconhecer que
o protecionismo serviu à miopia
de empreendedores pusilânimes,
os quais aproveitaram das vacas
gordas sem modernizar o aparelho produtivo. Mas logo chegaremos a uma causa originária: por
exemplo, os ditos empresários encheram seus bolsos, em vez de modernizar suas fábricas, porque as
elites brasileiras são uma herança
do extrativismo colonial etc.
As coisas vão se explicando, até
que em última instância tudo
acontece "porque o Brasil". Poderia se tornar uma expressão sem
verbo: há criminosos porque o
Brasil, há corruptos porque o Brasil, há caudilhos porque o Brasil,
há favelados porque o Brasil. E
por aí vai. Melhor, por aí não vai
a lugar nenhum, pois o Brasil torna-se assim a figura retórica do
primeiro motor imóvel de todas as
cadeias causais. Ele é portanto
imutável, igual a si mesmo.
Esse Brasil retórico, origem de
todos nossos infortúnios, vinga
por ser também nosso sumo bem,
nossa consolação: ele responde a
nossas perplexidades, autoriza
nossa inação e sobretudo cimenta
nossa comunidade. Ele é uma língua compartilhada, que nos torna
todos amigões. Graças a ele, podemos olhar para a Câmara Municipal, para o engenheiro que escravizou sua empregada, para o
deputado do narcotráfico e piscar
o olho uns para os outros, sorrindo encantados: "É isso aííííí!". Eis
que nossos males são do Brasil, do
mesmo jeito que os gols são da seleção. É o encontro festivo com
uma imagem fácil e pitoresca que
nos propõe prazeres narcisistas
clandestinos.
Vivo, como muitos outros, uma
contradição. Por um lado, há a
paixão de entender uma herança
que mistura ativos e passivos com
a esperança de conseguir assim
preparar um futuro melhor. Pelo
outro, a irritação com o recurso
contínuo a essa herança, em que a
fascinação complacente nos imobiliza, como se, logo na hora de
agir, Carmen Miranda saísse no
palco e pedisse para permanecermos sentados para o show.
Melhor confessar, para que se
entenda do que estou falando: ontem, um amigo me contou de um
horror brasileiro qualquer. Seus
olhos brilharam, irônicos, mas
complacentes, ao concluir: "Isso é
o Brasil!".
Pois é, não quero mais isso.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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