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São Paulo, segunda-feira, 17 de fevereiro de 2003

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Toni Morrison reavalia suas opiniões sobre a identidade afro-americana

Pantera negra

Associated Press
A escritora e prêmio Nobel de 1993 Toni Morrison, que lança no Brasil seu romance de estréia


CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

O dia 7 de outubro de 1993 soprou da Escandinávia uma frase que nunca deixou de acompanhar a escritora Toni Morrison. Foi com surpresa que nesse dia ela e todo o resto do mundo ouviram: "O Nobel de Literatura vai para Toni Morrison, que em seus romances, marcados por forças visionárias e importância poética, dá vida a um aspecto essencial da realidade americana".
O "aspecto essencial da realidade americana" em questão não era segredo. Seguindo a trilha de autores como Ralph Ellison ela construíra toda a sua ficção em cima das conflituosas relações de negros e brancos na América.
Foi com o tema de uma moça pele de ébano que sonhava em ser loirinha e de olhos azuis como Shirley Temple que a primeira Nobel negra da história fizera sua estréia. Era 1970, e a então professora e editora Morrison começava, com "O Olho Mais Azul", a afiar as garras que lhe valeram o apelido de Pantera Negra, em analogia ao grupo que inserira com força o debate das questões raciais na sociedade americana.
Mais de 30 anos depois, os primeiros passos da escritora chegam às prateleiras do Brasil pela Companhia das Letras.
Em entrevista à Folha por telefone, a Nobel, que amanhã completa 72 anos, comentou sua estréia literária e as mudanças na situação do negro desde que ela colocou a personagem Pecola Breedlove nas páginas americanas. Leia trechos a seguir.
 
Folha - "O Olho Mais Azul" foi publicado no início dos anos 70, em um período de grande ebulição no movimento negro americano. O que mudou nesse quadro nos últimos 30 anos?
Toni Morrison -
Acho que em alguns lugares da América o racismo ainda é tão brutal quanto o que retrato em "O Olho Mais Azul". Mas hoje existe ao menos uma cadeia social que leva adiante a idéia de que não pega bem se mostrar publicamente racista.
Isso, infelizmente, não impede que a lista de crimes por ódio racial ainda seja acachapante nos Estados Unidos. A maior mudança talvez tenha sido nas leis e também no surgimento de uma elite negra norte-americana.

Folha - As jovens negras ainda rezam para ter olhos azuis, como a personagem do seu livro?
Morrison -
Hoje não temos de sonhar pelos olhos azuis, podemos comprá-los (risos). Na verdade acontece algo curioso. Ter a pele muito branca hoje aparenta algo doentio. Se o parâmetro de beleza já foi ter a pele cor de marfim, com a qual sonhava Pecola, hoje é das bronzeadas que se gosta mais. Meus estudantes em Princenton, por exemplo, têm vergonha de muita brancura.
Os códigos de pele mudaram, e o Brasil é o ideal nesse aspecto, o como verifiquei aí, em 1990.

Folha - Falando em Brasil, o debate sobre a política de cotas para negros tem sido muito presente no começo do governo Lula. A sra. acha que um país mestiço como o Brasil tem condições de implementar as chamadas ações afirmativas?
Morrison -
Com certeza vai ser um processo cheio de controvérsias, como foi por aqui. Nunca vai agradar a todos. No Brasil, é muito óbvia a mistura racial. Se você escarafunchar pelas árvores genealógicas daí sempre vai achar alguma raiz negra. É importante que se tenha a consciência de que é tão pouco o que se pode perder com reparações aos que nunca tiveram as mesmas vantagens que os riscos devem ser corridos.

Folha - A sra. "correu riscos" com o posfácio que fez à reedição de "O Olho Mais Azul" em 93, ano em que ganhou o Nobel. Foi bastante dura com o livro. A sra. o reescreveria?
Morrison -
O romance em si não me parece que deveria ser rescrito, mas há um capítulo, aquele que é narrado pela mãe de Pecola, que me parece ter problemas técnicos. A mãe dá a entender que sabe de tudo o que se passou com Pecola, sendo que ela não teria como saber. E aí o romance intercala a voz dela com a minha voz. Hoje eu não faria algo assim, eu saberia muito melhor como descrever a estreiteza dos pensamentos da mãe de Pecola.

Folha - Muitos críticos dizem que "O Olho..." é um livro menor na sua obra. O que a sra. pensa disso?
Morrison -
Eu realmente não me importo. Acho que todos esses rótulos são muito chatos. É meu primeiro livro, não importa se é maior ou menor. É isso.

Folha - Como é a convivência com o rótulo "vencedora do Nobel". O Nobel é também uma jaula?
Morrison -
Claro que o Nobel leva a vantagens grandiosas, mas que podem facilmente se transformar em desvantagens igualmente grandes. A expectativa sobe incrivelmente, as pessoas em volta de você começam a te tratar de modo totalmente distinto, não com a mesma candura de antes.
Faço questão de afirmar que não construí uma persona, uma Toni Morrison diferente, por ser Prêmio Nobel. Autografo livros, faço palestras, dou entrevistas.
Andar por aí como um rótulo ambulante não cria boa literatura. Conheço outros Nobel, como Kenzaburo Oe e García Márquez e sei que não é dos prêmios que eles tiram a alegria de suas ficções.



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