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São Paulo, segunda-feira, 17 de fevereiro de 2003

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"UMA CÂMERA VÊ CASCUDO"

Fotos expõem a intimidade do folclorista brasileiro

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Carlos Lyra é um excelente fotógrafo de Natal que desfrutou do imenso privilégio de ter sido aluno, desde os idos de 1959, do professor Luis da Câmara Cascudo na Faculdade de Filosofia do Rio Grande do Norte.
"Serei professor até depois de morto". Esta frase dele diz tudo. Sua obra monumental talvez seja a maior didática que já existiu na América Latina, com os seus cerca de 150 livros, escritos todos à máquina e diretamente no papel.
Além disso, o professor não tinha secretário nem datilógrafo, era indiferente a prêmios e consagrações, trabalhava sozinho, era autodidata e se consagrou sem método e sem se alistar em nenhuma doutrina.
Carlos Lyra, homem de sorte, foi lá na casa de Luis da Câmara Cascudo e o fotografou na intimidade: charutão na boca, de pijama, sem camisa, brincando com os netos, abraçado pela mulher- D. Dahia-, sendo pintado num retrato por uma freira, deitado na rede de dormir, tocando piano, discursando de braços abertos, fazendo caretas, estudando em sua biblioteca ("babilônia", como ele próprio a denominou).
Essas fotografias revelam o que os seus livros mostram: Câmara Cascudo foi um desbundado, um homem livre, um filósofo que amava como ninguém o povo brasileiro.
Ele recebia quem quer que fosse em sua casa, mas só depois do meio-dia, hora em que acordava. Tinha o hábito de estudar até altas horas da madrugada. Todo mundo sabia disso em Natal. Até porteiro de hotel. O mestre só recebe à tarde.
Na década de 80, certa vez fui visitá-lo. Lance para mim inesquecível. Sua mulher cuidando dos passarinhos e ele sentado na cadeira de balanço comendo rebuçado. Genial mesmo é que não me ofereceu nenhum doce. Ficou na dele.
Saí de lá como se tivesse fechado o corpo no catimbó, aliás foi o que fez Mário de Andrade em 1928. Pouca gente sabe na literatura brasileira que Macunaíma é Luis da Câmara Cascudo.

Natal e a Segunda Guerra
Em 1945, durante a Segunda Guerra Mundial, Natal era base dos aliados. É bem possível que Hitler estivesse a fim de aprontar alguma lá. Natal, cidade militarmente estratégica.
Informa Carlos Lyra: "Na época da guerra, quando havia blecaute, a única sala iluminada da cidade, na Praça Sete de Setembro, era a biblioteca de Câmara Cascudo, permissão do comando militar".
Esse fato, que está a merecer um filme, é para mim a coisa mais emocionante da Segunda Guerra Mundial. Walter Lima Jr. foi o único cineasta que fez um filme sobre Cascudo vivo. Uma obra-prima. Ricardo Miranda o filmou depois de morto. É impressionante a identidade de Natal com Cascudo. Percebe-se isso nos botecos, nas ruas e até na água da praia, embora ele não soubesse nadar.
O fotógrafo Carlos Lyra conseguiu retratar a atmosfera da criação cascudiana feita no silêncio da noite. Seu último livro iria se chamar "Antes da Noite".
Mas não deu tempo. A safada da morte o pegou em 30 de julho de 1986. Baixou um imenso vazio em Natal, no Nordeste, no Brasil, onde a morte não baila.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "Glauber Pátria Rocha Livre" (ed. Senac), entre outros



Uma Câmera Vê Cascudo
    
Autor: Carlos Lyra
Editora: Sebo Vermelho
Quanto: R$ 25 (65 págs.)



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