São Paulo, sexta-feira, 17 de março de 2000


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CRÍTICA
Filme propõe "churrasco didático"

ALVARO MACHADO
especial para a Folha

Uma aula de história do Brasil ao pé da letra, ou seja, colada à crônica do alemão Hans Staden sobre suas desventuras no litoral sul brasileiro do século 16, tão insossa quanto nos livros didáticos mais politicamente corretos.
Ainda assim, os professorais 75 minutos de "Hans Staden" foram, em certa medida, frustrados pelo Departamento de Classificação Indicativa (Declas).
O órgão federal não quer alunos menores de 12 anos no interior das salas de aula, ou melhor, de exibição, em parte por causa da nudez dos personagens indígenas.
Há cerca de 15 dias, em São Paulo, o Declas encontrou apoio inesperado para sua "missão civilizatória", quando uma espectadora fez barulho no saguão do Espaço Unibanco de Cinema, frequentado pela elite econômica e intelectual da cidade.
Ela bradava contra um cartaz contendo a nudez branquela do ator Carlos Evelyn (Staden) em meio a uma multidão de índios, também nus. Um funcionário do complexo de salas teve de raspar com gilete o motivo do escândalo, enfeando o pôster já por si desengraçado. A bem da verdade, nem foi preciso raspar muito.
Tais episódios tragicômicos remetem, estranhamente, à censura imposta pelo regime militar brasileiro a outro título canibal, "Como Era Gostoso o Meu Francês" (70), de Nelson Pereira dos Santos, este sim "verdadeiro compêndio etnográfico do Brasil quinhentista" (na definição do crítico José Carlos Monteiro), livre transposição da mesma história.
Os paralelos cessam na escolha da fonte, já que todo o sabor, beleza e inteligência maliciosa da "cozinha" de Nelson, apimentada naquele ponto raro que estimula e não agride os sentidos, parecem esquecidos.
Não inspiraram nem de longe o diretor Luiz Alberto Pereira, que preferiu tons de um churrasco pantagruélico para a sua versão da narrativa do mentiroso Staden, aquele que enganou uma tribo tupinambá por nove meses, dizendo-se inimigo dos portugueses para escapar de ser morto e deglutido por seu valor de adversário especial. E que depois angariou fama e fundos na Europa, escrevendo um best seller sobre sua "agonia".
A história oficial registra que Staden foi condestável (algo como marechal) da fortaleza portuguesa de Bertioga, nomeado por Tomé de Sousa para combater indígenas. Porém, essa condição parece deliberadamente omitida pelo filme, que, ao contrário, destaca relação especial do protagonista com um escravo seu, indígena da etnia carijó.
A estratégia até poderia canalizar simpatias para o seu herói-condutor, mas a missão é impossibilitada pela escolha do ator Evelyn, dono de um semblante de eterna arrogância, padrão global de interpretação.
Até mesmo o modelo Beto Simas, promovido de índio de escola de samba para índio de cinema, sai-se melhor. A também ex-modelo Claudia Liz é escalada para transformar uma mítica iara em moderna louraça-belzebu, em sequência digna de constar no recente Carnaval dos 500 Anos.
Na outra ponta desse novelo de equívocos, o veterano Stênio Garcia encarna uma caricatura de pajé tupiniquim, com trejeitos de pai-de-santo.
E como em terra de pelados quem tem camisa é rei, Sérgio Mamberti (mercador) lembra que um ator é capaz de modular as suas falas com entonações diversas.
A antropofagia, originalmente homenagem ao valor do inimigo capturado, surge no centro do filme como um adorno de contas baratas para iludir nativos incautos. Despidas de qualquer sentido ritual, as imagens sublinham tupinambás envoltos em sombras, abocanhando mãos como hienas famintas. O sensacionalismo atinge o clímax com orelhas boiando num caldo bem temperado.
Após o aviltante churrasco cinematográfico, é preciso paciência para outra série de enquadramentos arrumadinhos e movimentos corporais sufocados de inibição. Talvez os classificadores de Brasília tenham razão: salvo a naturalidade com que a recebem os atores-modelos, a nudez não cai bem ao contingente de índios aculturados figurantes dessa produção.


Avaliação:   


Filme:Hans Staden Diretor: Luiz Alberto Pereira Produção: Brasil/Portugal, 1999 Com: Carlos Evelyn, Beto Simas, Sérgio Mamberti Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco 2, Jardim Sul 2 e circuito


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