São Paulo, sexta-feira, 17 de março de 2006

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CINEMA/CRÍTICA

"O Veneno da Madrugada" é baseado em García Márquez e tem Juliana Carneiro da Cunha em seu elenco

Novo Ruy Guerra se perde em sua estranheza

PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

A procura por formas não-convencionais de narrativa que marca o cinema de Ruy Guerra, principalmente seus filmes mais recentes, ganha em "O Veneno da Madrugada" sua faceta mais obscura. Mais uma vez, o diretor se debruça sobre um texto do amigo Gabriel García Márquez, adaptando o romance "La Mala Hora" (de 1963, anterior, portanto, a "Cem Anos de Solidão"). A luminosidade que deu o tom das versões de Guerra para "Erêndira" (1983) e "A Fábula da Bela Palomera" (1987) foi substituída por um tom radicalmente pessimista e por uma luz sombria, de tendências expressionistas.
A ação de "O Veneno da Madrugada" está situada em uma cidade anônima, empapada pela chuva e pela lama e empestada de ratos. Como em "Estorvo", os personagens falam em uma língua não definida entre o espanhol e o português -o que remete a algum espaço perdido, imaginário, da América do Sul. Guerra trabalha o som com independência e dubla seus atores, algumas vezes com vozes de outros, o que realça a sensação de estranheza. A adaptação de Guerra propõe que a mesma história reapareça para o espectador três vezes, cada uma delas revelando novos aspectos (algumas vezes contraditórios).
Essa premissa é trabalhada com uma imagem energética -a direção de fotografia é de Walter Carvalho- em longos planos-seqüência (alguns deles magníficos) realizados com a câmera na mão, que acompanham personagens parecidos com fantasmas. O tom, no entanto, não é fantástico. São fantasmas concretos, que habitam uma cidade também fantasma, onde tudo já está podre e morto, apesar de pessoas ainda estarem ali.
O personagem central está à beira do desespero. O alcaide interpretado por Leonardo Medeiros é um homem atormentado pela memória (o segredo do passado que carrega), pelo presente (nos bilhetes anônimos que são espalhados na calada da noite pela cidade, semeando a discórdia) e ainda fisicamente por uma dor de dente lancinante que o faz perder a cabeça e precipita a vingança que, no fundo, é seu propósito.
Em torno do alcaide giram outros personagens soturnos, em torno de uma intrincada disputa de poder, como a viúva Assis (Juliana Carneiro da Cunha) e o padre Angel (Fábio Sabag). Aos poucos, monta-se um quebra-cabeça que nunca se fecha de todo. É como se algumas peças não tivessem a forma necessária para completar a figura, ou só se encaixassem fora da moldura do quadro.
Todos esses elementos, descritos isoladamente, parecem no mínimo interessantes; na verdade eles não encontram uma conjunção eficaz no resultado final do filme. Diferentemente de "Estorvo", em que os efeitos de estranheza se completavam e se transformavam em uma expressão contundente, "O Veneno da Madrugada" se perde na confusão de sua proposta. Não é uma simples questão de clareza, mas de uma orquestração dos elementos que possam constituir, enfim, um filme.


O Veneno da Madrugada   
Produção: Brasil, 2004
Direção: Ruy Guerra
Com: Leonardo Medeiros, Juliana Carneiro da Cunha
Quando: a partir de hoje nos cines Frei Caneca, HSBC Belas Artes e Bombril


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