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DISCOS LANÇAMENTOS
Boulez faz interpretação definitiva de Messiaen
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
Num século de tantas indefinições, a música de Olivier Messiaen
(1908-92) é uma de nossas poucas
certezas. Mesmo os nomes mais
consolidados da composição contemporânea -Berio, Boulez, Ligeti, Stockhausen- ainda aguardam o juízo do século 21 para saber se perdurarão. Mas Messiaen
não é motivo de dúvida.
Juntamente com Stravinski,
Schoenberg ou Bartók, ele é um
dos maiores criadores da modernidade; e sua música, que, ao contrário da norma para os compositores de vanguarda, nunca sofreu
maior resistência da parte do público, vai-se tornando cada vez
mais popular.
O novo CD do maestro Pierre
Boulez apresenta três peças de
momentos distintos da carreira de
Messiaen e contribui, em grande
estilo, para diminuir nossa ignorância sobre o seu legado.
Imagine a seguinte mistura: ritmos gregos, "talas" indianas, uma
variedade de modos e escalas não
convencionais, orquestração
pós-simbolista acrescida de instrumentação oriental e transcrição
de cantos de pássaros, utilizando
três fontes: "as verdades teológicas
da crença católica", o amor humano e a natureza. Teria tudo para
não dar certo.
Miraculosamente essa combinação resultou numa música que é
ao mesmo
tempo individualíssima e
um padrão de
referência da
nossa época.
Exuberante e
sóbrio, controlado e lírico,
apaixonado e
ascético, pessoal e suprapessoal, Messiaen é um
professor admirado por todos e imitado
por nenhum.
Sua lição é irrepetível e nos
obriga à alegria
de retornar,
constantemente, a ele.
Retornar não é bem o termo para o que, na prática, é uma verdadeira descoberta dos "Poèmes
pour Mi" -um ciclo de nove canções para soprano e orquestra,
compostas por Messiaen em 1936,
para sua primeira mulher.
Ao contrário do que se passa no
repertório posterior e melhor conhecido, Messiaen está escrevendo aqui num idioma cromático,
mas tonal do início ao fim. Os melismas fabulosos para a voz e a orquestração luminosa parecem o
sonho realizado de seu velho professor Paul Dukas de entrar no século 20.
O ciclo como um todo, quase
meia hora de música, acaba soando repetitivo, como aliás deve-se
reconhecer, que é muitas vezes o
caso com Messiaen.
Mas há canções aqui, como a
"Ação de Graças" inicial ou "Le
Collier", que são simplesmente
obras-primas; e mereceriam ser
cantadas regularmente em concerto.
Françoise Pollet não exagera
nem diminui nada, o que é uma
virtude rara com cantores em geral e intérpretes de Messiaen em
particular.
Tanto controle não compete ao
pianista em "Le Réveil des Oiseaux" (O Despertar dos Pássaros), um dos três monumentos ornitológicos da década de 50 (os
outros são "Catalogue des Oiseaux" e "Oiseaux Exotiques").
Messiaen faz nessa peça o papel
mais radical de todos para um
compositor: literalmente só compõe, isto é, junta e organiza o que
já existe; no caso, o canto de 38
pássaros franceses, imitados pelos
instrumentos, numa sequência
acelerada, da
meia-noite ao
meio-dia.
E o pianista
Pierre-Laurent
Aimard mostra, mais uma
vez, o quanto a
música de
Messiaen tem a
ganhar, livre
das limitações
de Yvonne Loriod, a segunda
mulher e intérprete compulsória de suas
obras por muitos anos.
Completando o disco,
Boulez rege a
Orquestra de
Cleveland -que só toca tão bem
assim com ele- e a excelente, mas
discreta solista Joela Jones nos "esboços japoneses", de 1962: "Sept
Haikai", para piano e orquestra.
O próprio Boulez gravou os
"Haikai" uma vez antes, na década
de 70; mas de lá para cá seu ouvido
parece ter se tornado ainda mais
seguro e transparente do que já
era, e seu sentido de tempo ganhou uma gravidade e uma leveza
que não tinha.
No centro preciso dessa composição hieraticamente simétrica,
protegida por "dois reis-guardiões" (a introdução e a coda), como um templo budista, fica o "Gagaku", que relembra com acentos
pessoais a música de acompanhamento desse gênero venerável de
teatro japonês.
Uma melodia principal, no
trompete, multiplicado por dois
oboés e corne inglês, sobrepõe-se
à linha secundária do pícolo e do
clarinete em mi bemol, ambas planando sobre a massa contínua de
acordes dissonantes nas cordas.
Enquanto isso a percussão vai
tramando ritmos em permutações
variadas. O efeito conjunto não
tem igual; mas serviu claramente
de inspiração para o "Rituel", do
próprio Boulez, que tem aqui uma
ocasião de prestar homenagem ao
mestre.
"Sob as complexidades reais de
seu universo intelectual, Messiaen
permanece sempre simples e capaz de espanto -e isso, em si, já é
o bastante para nos cativar", dizia
Boulez em 1959, num programa de
rádio. Sua frase não se refere só ao
homem, mas à música também.
Quatro décadas depois, as complexidades de Messiaen não cessam de nos fascinar; e sua simplicidade e seu espanto têm em Boulez um intérprete definitivo.
Disco: Poèmes pour Mi, Sept Haikai, Le
Réveil des Oiseaux
Compositor: Olivier Messiaen
Regente: Pierre Boulez
Lançamento: DGG
Quanto: R$ 18, em média
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