São Paulo, terça, 17 de março de 1998

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DISCOS LANÇAMENTOS
Boulez faz interpretação definitiva de Messiaen

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

Num século de tantas indefinições, a música de Olivier Messiaen (1908-92) é uma de nossas poucas certezas. Mesmo os nomes mais consolidados da composição contemporânea -Berio, Boulez, Ligeti, Stockhausen- ainda aguardam o juízo do século 21 para saber se perdurarão. Mas Messiaen não é motivo de dúvida.
Juntamente com Stravinski, Schoenberg ou Bartók, ele é um dos maiores criadores da modernidade; e sua música, que, ao contrário da norma para os compositores de vanguarda, nunca sofreu maior resistência da parte do público, vai-se tornando cada vez mais popular.
O novo CD do maestro Pierre Boulez apresenta três peças de momentos distintos da carreira de Messiaen e contribui, em grande estilo, para diminuir nossa ignorância sobre o seu legado.
Imagine a seguinte mistura: ritmos gregos, "talas" indianas, uma variedade de modos e escalas não convencionais, orquestração pós-simbolista acrescida de instrumentação oriental e transcrição de cantos de pássaros, utilizando três fontes: "as verdades teológicas da crença católica", o amor humano e a natureza. Teria tudo para não dar certo.
Miraculosamente essa combinação resultou numa música que é ao mesmo tempo individualíssima e um padrão de referência da nossa época.
Exuberante e sóbrio, controlado e lírico, apaixonado e ascético, pessoal e suprapessoal, Messiaen é um professor admirado por todos e imitado por nenhum. Sua lição é irrepetível e nos obriga à alegria de retornar, constantemente, a ele.
Retornar não é bem o termo para o que, na prática, é uma verdadeira descoberta dos "Poèmes pour Mi" -um ciclo de nove canções para soprano e orquestra, compostas por Messiaen em 1936, para sua primeira mulher.
Ao contrário do que se passa no repertório posterior e melhor conhecido, Messiaen está escrevendo aqui num idioma cromático, mas tonal do início ao fim. Os melismas fabulosos para a voz e a orquestração luminosa parecem o sonho realizado de seu velho professor Paul Dukas de entrar no século 20.
O ciclo como um todo, quase meia hora de música, acaba soando repetitivo, como aliás deve-se reconhecer, que é muitas vezes o caso com Messiaen.
Mas há canções aqui, como a "Ação de Graças" inicial ou "Le Collier", que são simplesmente obras-primas; e mereceriam ser cantadas regularmente em concerto.
Françoise Pollet não exagera nem diminui nada, o que é uma virtude rara com cantores em geral e intérpretes de Messiaen em particular.
Tanto controle não compete ao pianista em "Le Réveil des Oiseaux" (O Despertar dos Pássaros), um dos três monumentos ornitológicos da década de 50 (os outros são "Catalogue des Oiseaux" e "Oiseaux Exotiques").
Messiaen faz nessa peça o papel mais radical de todos para um compositor: literalmente só compõe, isto é, junta e organiza o que já existe; no caso, o canto de 38 pássaros franceses, imitados pelos instrumentos, numa sequência acelerada, da meia-noite ao meio-dia.
E o pianista Pierre-Laurent Aimard mostra, mais uma vez, o quanto a música de Messiaen tem a ganhar, livre das limitações de Yvonne Loriod, a segunda mulher e intérprete compulsória de suas obras por muitos anos.
Completando o disco, Boulez rege a Orquestra de Cleveland -que só toca tão bem assim com ele- e a excelente, mas discreta solista Joela Jones nos "esboços japoneses", de 1962: "Sept Haikai", para piano e orquestra.
O próprio Boulez gravou os "Haikai" uma vez antes, na década de 70; mas de lá para cá seu ouvido parece ter se tornado ainda mais seguro e transparente do que já era, e seu sentido de tempo ganhou uma gravidade e uma leveza que não tinha.
No centro preciso dessa composição hieraticamente simétrica, protegida por "dois reis-guardiões" (a introdução e a coda), como um templo budista, fica o "Gagaku", que relembra com acentos pessoais a música de acompanhamento desse gênero venerável de teatro japonês.
Uma melodia principal, no trompete, multiplicado por dois oboés e corne inglês, sobrepõe-se à linha secundária do pícolo e do clarinete em mi bemol, ambas planando sobre a massa contínua de acordes dissonantes nas cordas.
Enquanto isso a percussão vai tramando ritmos em permutações variadas. O efeito conjunto não tem igual; mas serviu claramente de inspiração para o "Rituel", do próprio Boulez, que tem aqui uma ocasião de prestar homenagem ao mestre.
"Sob as complexidades reais de seu universo intelectual, Messiaen permanece sempre simples e capaz de espanto -e isso, em si, já é o bastante para nos cativar", dizia Boulez em 1959, num programa de rádio. Sua frase não se refere só ao homem, mas à música também.
Quatro décadas depois, as complexidades de Messiaen não cessam de nos fascinar; e sua simplicidade e seu espanto têm em Boulez um intérprete definitivo.

Disco: Poèmes pour Mi, Sept Haikai, Le Réveil des Oiseaux Compositor: Olivier Messiaen Regente: Pierre Boulez
Lançamento: DGG Quanto: R$ 18, em média



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