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"ORDEM E PROGRESSO"
Relançamento de obra do sociólogo aborda o Brasil da abolição da escravatura à Primeira Guerra
Gilberto Freyre ensina paciência aos trópicos
GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
A republicação de mais
um livro de Gilberto Freyre,
"Ordem e Progresso", é sinal de
que o xará de Apipucos continua
lido e despertando interesse, se
bem que, confesso, não é o de minha preferência. Acho-o prolixo e
meio boi com abóbora, retomando e espichando o que já havia sido escrito com vigor e originalidade em "Casa Grande e Senzala"
e "Sobrados e Mucambos".
O assunto de "Ordem e Progresso" é o Brasil da abolição da escravatura à Primeira Guerra Mundial, ou seja, o país às voltas com a
ordem mundial imperialista e a
sua modernidade fóssil baseada
na transição do carvão mineral
inglês para o petróleo norte-americano.
É bom lembrar que, não obstante seu xodó pelo luso, Gilberto
Freyre livrou a cara dos colonialistas ingleses e sua rapinagem no
Brasil. Ele situa "Ordem e Progresso" como um arremate da
Colônia à República, que deveria
ser seguido pela publicação de um
outro, magistralmente intitulado
"Jazigos e Covas Rasas", o qual
não veio a lume porque os originais se perderam.
Ele lamentou muito esses originais perdidos. Disse-o a mim
quando conversamos várias vezes
em Recife no início da década de
80. Seria o desfecho de sua reflexão sociológica sobre o morto
brasileiro, enfocado sob o prisma
da radicular desigualdade social.
O cemitério como o lugar do sono
que reproduz a moldura sociocultural do vivo, situado entre a riqueza e a pobreza. O jazigo dos ricos e a cova rasa dos pobres. Nessa arquitetura de morrer e ser enterrado, os vivos governam os
mortos.
Pito
A dualidade de "Ordem e Progresso" não traz o mesmo nível de
profundidade analítica dos livros
anteriores, embora, conforme a
primorosa introdução feita pelo
professor Nicolau Sevcenko, Gilberto Freyre inova no procedimento formal e metodológico da
coleta de dados e no pito que ele
passou em nossos intelectuais e
políticos, alienados e nefelibatas,
alheios ao saber "dos pajés e curandeiros caboclos e negros dos
quais muito poderiam aprender
sobre ervas e doenças tropicais",
enfim, a incapacidade de ouvir a
"tradição oral" das gentes brasileiras. Pito bonito e também merecido.
O tema gilbertiano recorrente é
a heterocronia das várias idades e
as formas sociais que se superpõem na sociedade brasileira, ressaltando aí o espírito de conciliação dos contrários, que é simultaneamente fortuna e danação, ou
seja, o que de melhor e de pior há
em nosso processo civilizatório.
Não é nunca ou Deus ou o Diabo.
Não se toca fogo na ponte que vai
do atraso ao avanço, de modo que
não raro a volúpia pelas reformas
redunda socialmente no reforço
da estrutura conservadora.
É por isso que a atitude intelectual ou política do confronto direto não surte o menor efeito do
ponto de vista da prática e da persuasão. O bom senso indica outro
caminho. Negociando se vai longe. Tanto que a palavra "radical"
ganhou uma semântica distorcida entre nós. É algo pejorativo. Sinônimo de cabeça dura ou intransigência.
O que a sua obra ensina, entre
outras coisas, é a absoluta necessidade de manter a paciência. Deus
é paciência. E Gilberto Freyre a
manteve com o uso do conectivo
"e" que define o seu estilo metonímico de fazer sociologia, em que
avulta o paradoxo acompanhado
da ausência de síntese. Não conclui nunca. Isso em outro sociólogo menos talentoso daria em simples e ilegível apologética conservadora, mas Gilberto Freyre escapou desse perigo reacionário pela
notável sensibilidade de ver e ouvir o seu espaço geográfico dos
trópicos.
A palavra "trópico" é a marca
fundamental de sua sociologia. O
ponto alto de seu pensamento.
Quanto à história ("Ordem e Progresso" é um livro histórico por
excelência), Gilberto Freyre em
sua juventude ficou impressionado com o mestre Oliveira Lima,
sublinhando o paradigma da nossa abolição da escravatura dentro
de uma progressão legal que introduz o trabalhador livre sem alterar contudo a antiga ordem senhorial.
O problema é que, aos trancos e
barrancos, essa ordem pode persistir, mas o progresso social jamais se tornará generalizável à
maioria da população. Essa patologia social constitui a "constante" da modernidade no século 20,
espécie de herança maldita que
adia eternamente a solução para
amanhã.
Vamos empurrando com a barriga as soluções adiadas. Nem é
preciso dizer que Gilberto Freyre
era um intelectual otimista quanto ao futuro do Brasil.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é
professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "A Salvação da Lavoura" (ed. Casa
Amarela)
Ordem e Progresso
Autor: Gilberto Freyre (com introdução
de Nicolau Sevcenko)
Editora: Global
(www.globaleditora.com.br)
Quanto: R$ 110 (1.120 págs.)
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