São Paulo, sábado, 17 de abril de 2004

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"ORDEM E PROGRESSO"

Relançamento de obra do sociólogo aborda o Brasil da abolição da escravatura à Primeira Guerra

Gilberto Freyre ensina paciência aos trópicos

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A republicação de mais um livro de Gilberto Freyre, "Ordem e Progresso", é sinal de que o xará de Apipucos continua lido e despertando interesse, se bem que, confesso, não é o de minha preferência. Acho-o prolixo e meio boi com abóbora, retomando e espichando o que já havia sido escrito com vigor e originalidade em "Casa Grande e Senzala" e "Sobrados e Mucambos".
O assunto de "Ordem e Progresso" é o Brasil da abolição da escravatura à Primeira Guerra Mundial, ou seja, o país às voltas com a ordem mundial imperialista e a sua modernidade fóssil baseada na transição do carvão mineral inglês para o petróleo norte-americano.
É bom lembrar que, não obstante seu xodó pelo luso, Gilberto Freyre livrou a cara dos colonialistas ingleses e sua rapinagem no Brasil. Ele situa "Ordem e Progresso" como um arremate da Colônia à República, que deveria ser seguido pela publicação de um outro, magistralmente intitulado "Jazigos e Covas Rasas", o qual não veio a lume porque os originais se perderam.
Ele lamentou muito esses originais perdidos. Disse-o a mim quando conversamos várias vezes em Recife no início da década de 80. Seria o desfecho de sua reflexão sociológica sobre o morto brasileiro, enfocado sob o prisma da radicular desigualdade social. O cemitério como o lugar do sono que reproduz a moldura sociocultural do vivo, situado entre a riqueza e a pobreza. O jazigo dos ricos e a cova rasa dos pobres. Nessa arquitetura de morrer e ser enterrado, os vivos governam os mortos.

Pito
A dualidade de "Ordem e Progresso" não traz o mesmo nível de profundidade analítica dos livros anteriores, embora, conforme a primorosa introdução feita pelo professor Nicolau Sevcenko, Gilberto Freyre inova no procedimento formal e metodológico da coleta de dados e no pito que ele passou em nossos intelectuais e políticos, alienados e nefelibatas, alheios ao saber "dos pajés e curandeiros caboclos e negros dos quais muito poderiam aprender sobre ervas e doenças tropicais", enfim, a incapacidade de ouvir a "tradição oral" das gentes brasileiras. Pito bonito e também merecido.
O tema gilbertiano recorrente é a heterocronia das várias idades e as formas sociais que se superpõem na sociedade brasileira, ressaltando aí o espírito de conciliação dos contrários, que é simultaneamente fortuna e danação, ou seja, o que de melhor e de pior há em nosso processo civilizatório. Não é nunca ou Deus ou o Diabo. Não se toca fogo na ponte que vai do atraso ao avanço, de modo que não raro a volúpia pelas reformas redunda socialmente no reforço da estrutura conservadora.
É por isso que a atitude intelectual ou política do confronto direto não surte o menor efeito do ponto de vista da prática e da persuasão. O bom senso indica outro caminho. Negociando se vai longe. Tanto que a palavra "radical" ganhou uma semântica distorcida entre nós. É algo pejorativo. Sinônimo de cabeça dura ou intransigência.
O que a sua obra ensina, entre outras coisas, é a absoluta necessidade de manter a paciência. Deus é paciência. E Gilberto Freyre a manteve com o uso do conectivo "e" que define o seu estilo metonímico de fazer sociologia, em que avulta o paradoxo acompanhado da ausência de síntese. Não conclui nunca. Isso em outro sociólogo menos talentoso daria em simples e ilegível apologética conservadora, mas Gilberto Freyre escapou desse perigo reacionário pela notável sensibilidade de ver e ouvir o seu espaço geográfico dos trópicos.
A palavra "trópico" é a marca fundamental de sua sociologia. O ponto alto de seu pensamento. Quanto à história ("Ordem e Progresso" é um livro histórico por excelência), Gilberto Freyre em sua juventude ficou impressionado com o mestre Oliveira Lima, sublinhando o paradigma da nossa abolição da escravatura dentro de uma progressão legal que introduz o trabalhador livre sem alterar contudo a antiga ordem senhorial.
O problema é que, aos trancos e barrancos, essa ordem pode persistir, mas o progresso social jamais se tornará generalizável à maioria da população. Essa patologia social constitui a "constante" da modernidade no século 20, espécie de herança maldita que adia eternamente a solução para amanhã.
Vamos empurrando com a barriga as soluções adiadas. Nem é preciso dizer que Gilberto Freyre era um intelectual otimista quanto ao futuro do Brasil.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "A Salvação da Lavoura" (ed. Casa Amarela)

Ordem e Progresso
   
Autor: Gilberto Freyre (com introdução de Nicolau Sevcenko)
Editora: Global (www.globaleditora.com.br)
Quanto: R$ 110 (1.120 págs.)



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