São Paulo, quinta-feira, 17 de abril de 2008

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Análise/obra adulta de Lobato

Reedição enriquece reflexão sobre autor, mas acumula erros

Edições recentes dos livros "Urupês", "Cidades Mortas" e "Negrinha" revelam descuido com as datas de publicação

LUÍS AUGUSTO FISCHER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma resenha que tenha em mãos a reedição completa e bonita da obra de Monteiro Lobato só pode começar pelo elogio. Fazia muitos anos que não circulava edição da obra do genial criador do Sítio do Picapau Amarelo, do instigante homem público, do interessante ficcionista que foi Monteiro Lobato.
E o elogio genérico naturalmente alcança os três volumes que são o objeto desta resenha: "Urupês", de 1918; "Cidades Mortas", de 1919; e "Negrinha", de... de quando mesmo?
No corpo do livro se fala em 1923 e em 1920, numa descabida hesitação que se repete, abaixo do título de cada conto, em que há uma data, talvez da redação, talvez da primeira edição. O primeiro conto, "Negrinha", vem com a data de 1923; o segundo, "As Fitas da Vida", 1925; depois vem um sem data, outros de 24, 25, 22, e, lá para o fim, há contos de 1938, 1939 e 1942. Como assim?
O leitor dessa edição não vai ficar sabendo como assim, porque nada se explica nela acerca disso. Se tiver paciência e for aos manuais e aos sites, ficará sabendo que o livro teve um substantivo acréscimo quando de sua segunda edição, em... quando foi mesmo? Não custava a edição haver se encarregado desses dados.
Da mesma forma, deveria ter tomado cautelas básicas, por exemplo dizendo claramente que as notas ao pé das páginas dos contos, em particular dos que lidam com o mundo rural, foram apostas pelo próprio autor, ciente de que entre sua intenção de falar à cidade sobre aquele mundo primitivo e a realidade do leitor havia um pequeno abismo, quando menos vocabular.

Fantasma de 1922
Não é pinimba, ainda mais se levarmos em conta que a fama de Lobato, nos livros em questão, se ergue contra um fantasma ainda muito atuante, que tem data e local de nascimento marcados: 1922, a data mais fetichizada da história da cultura brasileira, a data da festa provinciana que foi a Semana de Arte Moderna, fenômeno também nascido em São Paulo e generalizado para o Brasil nas décadas seguintes.
Ocorre que Monteiro Lobato, que não se filiou ao grupo modernista paulistano, foi, de fato, em quase tudo, um militante das mesmas causas.
Ele discute modernização do país (mais do que da arte em si) e da linguagem (mas incorporando o mundo rural); fala da necessidade de revisar os itens da cultura prestigiosa do Brasil; confronta o conservadorismo (mais o ideológico do que o quase-só estético); quer dizer, a mesmíssima pauta do Mário de Andrade (mas com outros alvos).
Seus contos, nos três livros, mostram hesitações, em fundo e forma, que não caberiam a um militante cego. De um lado, traz a linguagem caipira para o texto escrito, mantendo seu narrador; de outro, quase sempre como testemunha de fora.

Jeca Tatu
Assim como chama a atenção para o campo, que está parado no tempo (ele fala de sua região natal, no vale do Paraíba do Sul, não do Oeste progressista), também inventa um personagem crivado de ambigüidades: Jeca Tatu, primeiro visto como um vagabundo irremediável, eternamente a "vegetar de cócoras", "incapaz de evolução", "impenetrável ao progresso", "parasita da terra", visão que apenas anos depois ele atribuiria à doença, livrando o sujeito de sua culpa.
São hesitações eloqüentes, é preciso dizer. Lobato, ecoando Euclides da Cunha e antecipando Gilberto Freyre, primeiro desprezou o povo real, para só depois compreender que a miséria era a mãe do desprezado.
Em literatura, sua turma não é a dos urbanólatras modernistas da capital, mas a dos narradores naturalistas que tentavam conciliar o inconciliável na periferia brasileira do Ocidente: o desejo da modernização acelerada, de recuperação, com o afeto pelos que iam ficando para trás, pelos perdedores.
Nessa companhia ele faz a figura certa: Afonso Arinos, Simões Lopes Neto, Hugo de Carvalho Ramos e alguns outros.
Figura pouca? Só segundo a régua modernista de 22, que ele recusou, mas com a qual continuam a medi-lo, também nessa nova edição.


LUÍS AUGUSTO FISCHER é professor de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de "Literatura Brasileira - Modos de Usar" (L&PM).

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