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Análise/obra adulta de Lobato
Reedição enriquece reflexão sobre autor, mas acumula erros
Edições recentes dos livros "Urupês", "Cidades Mortas" e "Negrinha" revelam descuido com as datas de publicação
LUÍS AUGUSTO FISCHER
ESPECIAL PARA A FOLHA
Uma resenha que tenha
em mãos a reedição
completa e bonita da
obra de Monteiro Lobato só pode começar pelo elogio. Fazia
muitos anos que não circulava
edição da obra do genial criador
do Sítio do Picapau Amarelo, do
instigante homem público, do
interessante ficcionista que foi
Monteiro Lobato.
E o elogio genérico naturalmente alcança os três volumes
que são o objeto desta resenha:
"Urupês", de 1918; "Cidades
Mortas", de 1919; e "Negrinha",
de... de quando mesmo?
No corpo do livro se fala em
1923 e em 1920, numa descabida hesitação que se repete,
abaixo do título de cada conto,
em que há uma data, talvez da
redação, talvez da primeira edição. O primeiro conto, "Negrinha", vem com a data de 1923; o
segundo, "As Fitas da Vida",
1925; depois vem um sem data,
outros de 24, 25, 22, e, lá para o
fim, há contos de 1938, 1939 e
1942. Como assim?
O leitor dessa edição não vai
ficar sabendo como assim, porque nada se explica nela acerca
disso. Se tiver paciência e for
aos manuais e aos sites, ficará
sabendo que o livro teve um
substantivo acréscimo quando
de sua segunda edição, em...
quando foi mesmo? Não custava a edição haver se encarregado desses dados.
Da mesma forma, deveria ter
tomado cautelas básicas, por
exemplo dizendo claramente
que as notas ao pé das páginas
dos contos, em particular dos
que lidam com o mundo rural,
foram apostas pelo próprio autor, ciente de que entre sua intenção de falar à cidade sobre
aquele mundo primitivo e a
realidade do leitor havia um pequeno abismo, quando menos
vocabular.
Fantasma de 1922
Não é pinimba, ainda mais se
levarmos em conta que a fama
de Lobato, nos livros em questão, se ergue contra um fantasma ainda muito atuante, que
tem data e local de nascimento
marcados: 1922, a data mais fetichizada da história da cultura
brasileira, a data da festa provinciana que foi a Semana de
Arte Moderna, fenômeno também nascido em São Paulo e generalizado para o Brasil nas décadas seguintes.
Ocorre que Monteiro Lobato, que não se filiou ao grupo
modernista paulistano, foi, de
fato, em quase tudo, um militante das mesmas causas.
Ele discute modernização do
país (mais do que da arte em si)
e da linguagem (mas incorporando o mundo rural); fala da
necessidade de revisar os itens
da cultura prestigiosa do Brasil;
confronta o conservadorismo
(mais o ideológico do que o
quase-só estético); quer dizer, a
mesmíssima pauta do Mário de
Andrade (mas com outros alvos).
Seus contos, nos três livros,
mostram hesitações, em fundo
e forma, que não caberiam a um
militante cego. De um lado, traz
a linguagem caipira para o texto escrito, mantendo seu narrador; de outro, quase sempre como testemunha de fora.
Jeca Tatu
Assim como chama a atenção
para o campo, que está parado
no tempo (ele fala de sua região
natal, no vale do Paraíba do Sul,
não do Oeste progressista),
também inventa um personagem crivado de ambigüidades:
Jeca Tatu, primeiro visto como
um vagabundo irremediável,
eternamente a "vegetar de cócoras", "incapaz de evolução",
"impenetrável ao progresso",
"parasita da terra", visão que
apenas anos depois ele atribuiria à doença, livrando o sujeito
de sua culpa.
São hesitações eloqüentes, é
preciso dizer. Lobato, ecoando
Euclides da Cunha e antecipando Gilberto Freyre, primeiro
desprezou o povo real, para só
depois compreender que a miséria era a mãe do desprezado.
Em literatura, sua turma não
é a dos urbanólatras modernistas da capital, mas a dos narradores naturalistas que tentavam conciliar o inconciliável na
periferia brasileira do Ocidente: o desejo da modernização
acelerada, de recuperação, com
o afeto pelos que iam ficando
para trás, pelos perdedores.
Nessa companhia ele faz a figura certa: Afonso Arinos, Simões Lopes Neto, Hugo de Carvalho Ramos e alguns outros.
Figura pouca? Só segundo a régua modernista de 22, que ele
recusou, mas com a qual continuam a medi-lo, também nessa
nova edição.
LUÍS AUGUSTO FISCHER é professor de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul e autor de "Literatura Brasileira - Modos de
Usar" (L&PM).
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