São Paulo, sexta-feira, 17 de abril de 2009

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CARLOS HEITOR CONY

Produção cultural nas Papuas


Todos têm ideias, todos estão em fase de criação e todos precisam de uma "força" suplementar


DE COISAS e pessoas incompreensíveis para mim, o mundo e a vida estão cheios. Quanto mais o tempo escorre, menos compreendo coisas e pessoas. Resignado, pasmo, nem ouso passar recibo, assumindo o papel de cínico ou de sábio. Confesso a ignorância e vou em frente.
Vamos aos fatos: não há dia de minha pecaminosa vida em que não seja abordado direta ou indiretamente por um criador. Antigamente, quando se dizia "criador", pensava-se em Deus Pai Todo-Poderoso ou num criador de galinhas.
Hoje, criador é o artista em seu momento mais nobre e transcendental. Músicos, poetas, dramaturgos, comediógrafos, cineastas, atores, atrizes, diretores teatrais, roteiristas, divulgadores, cantores, bailarinos, coreógrafos, carnavalescos, romancistas, contistas, ensaístas, animadores culturais, cientistas políticos -a fauna é vasta, onímoda e estafante. E, sobretudo, insistente.
Todos têm ideias, todos estão em fase de criação e todos precisam de uma "força". Evidente que essa força é suplementar, uma vez que a coisa a ser criada já está no papo, ou seja, já é sucesso de público e de crítica, já rendeu milhões e já marcou não apenas o novo século, mas dividiu a história da humanidade em antes e depois da coisa criada -embora tal criação ainda não tenha sido criada, está em progresso, "in progress", como convém às obras definitivas.
A mania agora, para forçar a força, é garantir que a criação "já está vendida para o exterior" e comprada para a tevê. Honestamente, não sei onde está ou no que consiste esse exterior que compra "ab ovo" uma produção cultural e artística aos lotes, às toneladas, por preços astronômicos (antes eram em dólares, agora em euros) e por prazos abstratos, uma vez que esse exterior tem tanta confiança no negócio que nem se preocupa em saber quando as criações serão devidamente criadas.
Outro dia, um cara me propôs participação na feitura de um vídeo a respeito da obra de um amigo meu, romancista dos melhores e de melhor público. Até certo ponto da conversa eu me interessei pelo assunto, pois sentia que o projeto valia a pena, o romancista merecia o trabalho e a homenagem. Mas, de repente, o cara me declarou: "Vai ser barbada o financiamento. Já vendi duas cotas para o exterior".
Aí eu embatuquei. Que exterior seria esse que comprava um produto inexistente sobre um tema desconhecido? Apertei o cara como pude, gostaria de saber quais nações e povos desejavam consumir a obra a ser criada. O cara fez mistério, alegou que ainda não podia divulgar, mas a coisa estava amarrada, o mercado internacional escancarava-se para a produção, a expectativa era geral e crescente.
Bem, para citar um mercado qualquer, eu falei na ilhas Papuas, que talvez tivessem algum interesse em saber como vive e escreve o meu amigo romancista.
Não, não eram as ilhas Papuas, que, aliás, não existem mais, mudaram de nome, mas não de endereço, continuam longe pra burro.
Misteriosamente, o cara me deu uma dica: o "exterior" que compraria as duas cotas era apenas o primeiro passo, logo depois ele teria à disposição, "o vasto e florescente mercado do Leste Europeu".
Sim, o Leste Europeu. Por acaso, tenho um trabalho traduzido num dos países do Leste Europeu e sei como é problemática a relação obra-consumidor em se tratando de países que geralmente não enviam direitos autorais pelos canais tradicionalmente burgueses e capitalistas.
Mesmo assim, para não fazer feio, prometi que estudaria o assunto. O cara ficou satisfeito e eu também. Afinal, se há coisa e assunto que preciso estudar é justamente a coragem e a fome de conhecimento desse fabuloso exterior que, à falta do que fazer, criou assombrosas expectativas sobre a nossa produção cultural e artística.
Li o projeto, que é vasto e apoiado em imponente bibliografia, com a boa vontade que não tenho sequer para a minha mesquinha produção pessoal. Prometi vagamente que, chegada a hora, daria a tal força solicitada em forma de um curto depoimento em que elogiaria ao mesmo tempo e em doses iguais a criação e o criador. As ilhas Papuas não perdem nada por esperar.


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