|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RESENHA DA SEMANA
O fim da ficção
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Quem corta fora as duas
mãos e escreve sua experiência
real com os pés tem muito mais
chances de virar best seller do
que quem escreve com a mão a
história de um personagem ficcional que cortou as duas mãos
e escreveu um livro com os pés.
O raciocínio pode ser um tanto
tortuoso, mas está na base do
sucesso de alguns gêneros hoje
tão na moda, como as biografias, em geral escritas com os
pés.
A experiência mediada da ficção se perdeu; agora, o que o
leitor procura é a ilusão de uma
experiência mais direta e imediata por meio do livro, como
se isso fosse possível. Quer
acreditar que o que está lendo
reproduz uma experiência real,
a vida de gente real, no fundo
tão "inventada" pela narração
quanto qualquer ficção.
Na sua breve biografia de
"Marcel Proust" (Objetiva),
Edmund White chega a dizer
que "vivemos na época do "romance de não-ficção'". E ousa
classificar o autor de "Em Busca do Tempo Perdido" como
precursor desse novo gênero
com que hoje se tenta abolir a
idéia de ficção para atender a
uma maior demanda de mercado.
O livro de White prova que
quem lê biografias não lerá necessariamente literatura; uma
não é ponte para a outra, mas
quer substituí-la. Sua biografia
é como um guia turístico da literatura para quem se interessa
mais pela sexualidade do autor
do que pelo que ele escreveu,
com curiosidades do tipo:
"Proust foi (...) a Provins (além
do local atual da Disneylândia
de Paris)".
Sua inteligência já fica comprometida desde a segunda página, quando cita um nome
pouco significativo como o de
Andrew Holleran, autor do
"romance gay norte-americano mais importante dos anos
70" (e daí?), mas vai desmoronar mesmo ao tentar explicar
por que Proust, mestre dos pastiches, evitou parodiar escritores de estilo mais simples e direto: "Exatamente como os travestis evitam "produzir" beldades despojadas como Audrey
Hepburn e se inspiram em mulheres excessivamente construídas como Mae West ou Barbra Streisand" (!).
White está mais preocupado
em saber se Proust se adequa
ao modelo e ao gosto do gay
americano politicamente correto de hoje do que em qualquer outra coisa. Um novo moralismo que expõe não a ignorância do biógrafo, mas a obtusidade da sua militância. Para
completar, a edição brasileira
nem se preocupou em adaptar
a bibliografia ao final que, entre
outras, dá à obra de Proust o título original de "In Search of
Lost Time".
Pietro Citati, autor de
"Proust" (Companhia das Letras), é mais inteligente e sofisticado: faz questão de dizer que
seu livro não é uma biografia,
mas um "romance-ensaio". Citati inventou o gênero até certo
ponto lúdico -e até certo ponto grotesco- da biografia-pastiche, em que a vida dos escritores é descrita no estilo deles.
E usa as imagens mais afetadas no seu mimetismo de
Proust. Pode falar da "ânsia dolorosa e irreprimível" do escritor. E depois continuar com
"trêmula gazela amorosa" e
frases do tipo "percorrera ileso
o horrível país dos sonhos" ou
"Qual as Danaides, ele enchia
sem fim seus tonéis de dor".
Mas o pastiche -que Proust
ao menos praticou com humor- esgota o original; não só
o mimetismo de Citati reduz o
"estilo Proust" a lugar-comum,
mas a vontade de tirar da obra
literária a realidade do autor
esvazia qualquer enigma na obviedade de uma explicação psicológica.
Apesar de todas as suas reservas em relação à biografia tradicional, Citati ainda precisa,
como White, reinterpretar à
sua maneira o que Proust pontificou em "Contra Sainte-Beuve" para poder fazer as pontes
-inevitáveis mesmo numa
biografia de pretensões "literárias"- entre autor e obra, e entre os personagens e as pessoas
reais que os teriam inspirado.
Proust combateu enfaticamente o método biográfico que
Sainte-Beuve propunha para a
compreensão das obras literárias. Defendia a idéia mais moderna -mas que parece estar
saindo de moda- de que o eu
da vida do autor nada tem a ver
com o eu que escreve a obra.
Citati prefere ver as coisas de
um outro ângulo: "Quantas
coisas Proust tinha em comum
com Sainte-Beuve! (...) Quanto
à obra-prima de Sainte-Beuve,
"Port-Royal", essa encantadora
fluidez narrativa, que absorve
em si todas as resistências, já
não é um eco antecipado (...) da
"Recherche'?".
Em resposta a Laure Hayman, que deve ter lido Proust
como se fosse a revista "Caras"
da época e ficou indignada ao
se reconhecer no personagem
de Odette, uma mulher do
mundo, o escritor enviou uma
carta que hoje poderia ser endereçada também a Citati e a
White -e a quem mais tentar
vender a ilusão oportunista e
contraditória do "romance de
não-ficção": "As mulheres de
sociedade, à exceção das que
são notáveis, não têm a menor
idéia do que é a criação literária. Na minha lembrança, a senhora era notável. Sua carta me
decepcionou. Odette é o contrário da senhora".
Livro: Marcel Proust
Lançamento: Objetiva
Autor: Edmund White
Quanto: R$ 16 (160 págs.)
Livro: Proust
Lançamento: Companhia das Letras
Autor: Pietro Citati
Quanto: R$ 29 (330 págs.)
Texto Anterior: Coleção da Record retrata aventuras por terra e pelo ar Próximo Texto: Artes Plásticas: Fundação americana vem divulgar bolsas Índice
|