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Mazzantini trilha os caminhos periféricos do amor
FRANCESCA ANGIOLILLO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Um acidente de vespa irrompe
na vida de Timoteo, partindo-a
pela metade. Vendo Angela, sua
filha, de 15 anos, presa à existência
pela corda balouçante do soro
hospitalar, inicia um processo de
rememoração, uma espécie de
acerto de contas com um passado
que a menina, deitada numa sala
de operação, a cabeça aberta, desconhece.
Em um monólogo mental, o pai
desfolha suas fraquezas, inclusive
e sobretudo a maior delas: um caso extraconjugal que duas décadas antes já provocara uma bifurcação na sua rotina aparentemente invejável. "Affair" esse que ele,
cirurgião renomado, casado com
uma jornalista bem-sucedida,
manteve com uma mulher pobre,
ao que tudo indica sem atrativos,
que encontrou por acaso nos subúrbios.
O que poderia dar num melodrama (que realmente é) fácil (nada disso), resulta num livro potente, graças à habilidade e ao refinamento estilístico de Margaret
Mazzantini, autora italiana apresentada ao Brasil por este seu segundo romance, "Não se Mexa"
(2001).
O primeiro, "Il Catino de Zinco"
(A Bacia de Zinco, 1994), já impactara a crítica e o público na Itália. Mas foi com "Não se Mexa"
que a escritora -originalmente
atriz- se firmou de maneira definitiva na cena literária.
Pelo livro, Mazzantini, 41, levou
no ano passado o Prêmio Strega
-o que a colocou num panteão
já ocupado por Dino Buzzati,
Umberto Eco e 53 outros nomes,
o que contribuiu, com certeza, para que "Não se Mexa" chegasse a
impressionantes 400 mil cópias.
A ficcionista equilibra a narrativa entre o suspense e a dimensão
subjetiva. E percebe bem que foi
isso que deu ao romance tanto
êxito: "Ele obteve a adesão de um
público transversal. Como tem
uma trama forte, capturou leitores mais "fáceis". Mas também
chegou aos mais "difíceis", mais
cultos", diz à Folha, falando por
telefone de sua casa em Roma.
Margaret Mazzantini não veio à
Bienal do Livro. Publicado no
mês passado, seu romance nem
mesmo figura no site da editora
como um lançamento do evento.
Uma lacuna importante, mais
ainda porque é a Itália o país homenageado neste ano.
"Recebi o convite, mas não dava, com três filhos", diz Mazzantini, frisando que, para colocar em
primeiro plano a vida pessoal, já
preferira diminuir o ritmo itinerante dos palcos -fato que, admite, lhe deu o empurrão decisivo
rumo às letras.
Filha de um escritor italiano e de
uma pintora irlandesa, Mazzantini, que nasceu em Dublin, tratou
o oficio literário como uma possibilidade distante até depois dos 30
anos. Preferiu, por um "bloqueio", colocar-se "a serviço do
mundo poético dos outros". "Mas
precisava dar vazão a algo murado dentro de mim."
Este "algo" surge, para a autora,
do seu lado "observador do humano na vida". "Um ficcionista é
um olho aberto para a vida. E,
quando se fala da vida, se fala
também da morte. Sempre é pelo
contraponto, pela dicotomia que
se avança."
Foi assim que, depois de ter encarado a história do século passado pela ótica feminina, em um
primeiro livro inspirado na vida
de sua avó, resolveu "entrar na intimidade dos homens". "Talvez
pelo gosto infantil de travestir-se,
a capacidade de mimetizar que é a
mesma no ator e no escritor, capacidade de entrar nos ânimos e
pensamentos do outro."
A "viagem em mar aberto" que
fez para encontrar essa voz masculina durou cinco anos, ao longo
dos quais atou e voltou a cortar o
fio entre o "burguês" Timoteo e
sua amante "opaca", Italia.
É justamente da distância entre
os dois protagonistas que surge a
perspectiva da redenção, característica fundante do gênero melodramático.
Redenção pelo sacrifício: Timoteo revive o amor periférico que
não foi capaz de assumir, confessa
que Italia fazia parte dele "como
um rabo pré-histórico, alguma
coisa mutilada pela evolução", da
qual conserva o "halo, como que
uma misteriosa presença no vazio". Alguma coisa, em suma, tão
visceral e genuína a ponto de lhe
permitir esperar que a renúncia a
ela valha a vida da filha.
NÃO SE MEXA. Autora: Margaret
Mazzantini. Tradução: Eduardo Brandão.
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/
xx/11/3707-3500). Quanto: R$ 39 (302
págs.). Na Bienal: estandes 313 a 328,
Pavilhão 4 (Verde).
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