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São Paulo, sábado, 17 de maio de 2003

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Mazzantini trilha os caminhos periféricos do amor

FRANCESCA ANGIOLILLO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Um acidente de vespa irrompe na vida de Timoteo, partindo-a pela metade. Vendo Angela, sua filha, de 15 anos, presa à existência pela corda balouçante do soro hospitalar, inicia um processo de rememoração, uma espécie de acerto de contas com um passado que a menina, deitada numa sala de operação, a cabeça aberta, desconhece.
Em um monólogo mental, o pai desfolha suas fraquezas, inclusive e sobretudo a maior delas: um caso extraconjugal que duas décadas antes já provocara uma bifurcação na sua rotina aparentemente invejável. "Affair" esse que ele, cirurgião renomado, casado com uma jornalista bem-sucedida, manteve com uma mulher pobre, ao que tudo indica sem atrativos, que encontrou por acaso nos subúrbios.
O que poderia dar num melodrama (que realmente é) fácil (nada disso), resulta num livro potente, graças à habilidade e ao refinamento estilístico de Margaret Mazzantini, autora italiana apresentada ao Brasil por este seu segundo romance, "Não se Mexa" (2001).
O primeiro, "Il Catino de Zinco" (A Bacia de Zinco, 1994), já impactara a crítica e o público na Itália. Mas foi com "Não se Mexa" que a escritora -originalmente atriz- se firmou de maneira definitiva na cena literária.
Pelo livro, Mazzantini, 41, levou no ano passado o Prêmio Strega -o que a colocou num panteão já ocupado por Dino Buzzati, Umberto Eco e 53 outros nomes, o que contribuiu, com certeza, para que "Não se Mexa" chegasse a impressionantes 400 mil cópias.
A ficcionista equilibra a narrativa entre o suspense e a dimensão subjetiva. E percebe bem que foi isso que deu ao romance tanto êxito: "Ele obteve a adesão de um público transversal. Como tem uma trama forte, capturou leitores mais "fáceis". Mas também chegou aos mais "difíceis", mais cultos", diz à Folha, falando por telefone de sua casa em Roma.
Margaret Mazzantini não veio à Bienal do Livro. Publicado no mês passado, seu romance nem mesmo figura no site da editora como um lançamento do evento. Uma lacuna importante, mais ainda porque é a Itália o país homenageado neste ano.
"Recebi o convite, mas não dava, com três filhos", diz Mazzantini, frisando que, para colocar em primeiro plano a vida pessoal, já preferira diminuir o ritmo itinerante dos palcos -fato que, admite, lhe deu o empurrão decisivo rumo às letras.
Filha de um escritor italiano e de uma pintora irlandesa, Mazzantini, que nasceu em Dublin, tratou o oficio literário como uma possibilidade distante até depois dos 30 anos. Preferiu, por um "bloqueio", colocar-se "a serviço do mundo poético dos outros". "Mas precisava dar vazão a algo murado dentro de mim."
Este "algo" surge, para a autora, do seu lado "observador do humano na vida". "Um ficcionista é um olho aberto para a vida. E, quando se fala da vida, se fala também da morte. Sempre é pelo contraponto, pela dicotomia que se avança."
Foi assim que, depois de ter encarado a história do século passado pela ótica feminina, em um primeiro livro inspirado na vida de sua avó, resolveu "entrar na intimidade dos homens". "Talvez pelo gosto infantil de travestir-se, a capacidade de mimetizar que é a mesma no ator e no escritor, capacidade de entrar nos ânimos e pensamentos do outro."
A "viagem em mar aberto" que fez para encontrar essa voz masculina durou cinco anos, ao longo dos quais atou e voltou a cortar o fio entre o "burguês" Timoteo e sua amante "opaca", Italia.
É justamente da distância entre os dois protagonistas que surge a perspectiva da redenção, característica fundante do gênero melodramático.
Redenção pelo sacrifício: Timoteo revive o amor periférico que não foi capaz de assumir, confessa que Italia fazia parte dele "como um rabo pré-histórico, alguma coisa mutilada pela evolução", da qual conserva o "halo, como que uma misteriosa presença no vazio". Alguma coisa, em suma, tão visceral e genuína a ponto de lhe permitir esperar que a renúncia a ela valha a vida da filha.


NÃO SE MEXA. Autora: Margaret Mazzantini. Tradução: Eduardo Brandão. Editora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/3707-3500). Quanto: R$ 39 (302 págs.). Na Bienal: estandes 313 a 328, Pavilhão 4 (Verde).


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