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MARCELO COELHO
Hora de tomar minhas providências
Há coisa de três semanas
perguntei a uma amiga que
já foi vítima de assalto e de tentativa de seqüestro se ela planejava
blindar o carro. Respondeu-me
que não. "Ah, se for para pensar
assim..."
Entendi que isso representaria,
para ela, uma espécie de derrota
pessoal. Não que ela fosse de esquerda ou que ela tivesse preconceito quanto ao estilo de vida dos
grandes milionários. Mas blindar
o carro seria reconhecer, de uma
vez por todas, a impossibilidade
de levar uma vida normal, civil,
numa cidade como São Paulo.
Equivaleria a reconhecer um estado de guerra permanente nas
ruas em que circulamos. Mais do
que isso, seria deixar uma outra
pergunta sem resposta: por que
não se mudar para outra cidade?
Alguém aceitaria um bom emprego em Bagdá?
Por trás disso tudo, há uma confissão de fracasso pessoal. Queremos nos proteger por uma questão de bom senso, de racionalidade privada. Entretanto, quanto
maiores são os custos dessa atitude, mais somos confrontados com
a irracionalidade coletiva, com o
absurdo da situação social em
que vivemos.
Comportar-se racionalmente
numa sociedade irracional envolve, assim, negar o mundo à nossa
volta, reduzindo a zero qualquer
contato com o exterior.
Vi uma vez na televisão que, em
algum país oriental mais desenvolvido que o Brasil (não me lembro se a Coréia, a Tailândia ou a
Indonésia), a indústria automobilística tinha desenvolvido mecanismos especialmente engenhosos no esforço de, vamos dizer,
dissuadir a abordagem de elementos criminosos.
Havia, por um exemplo, um jogo de lâminas retráteis, correndo
por baixo da carroceria, capaz de
amputar os pés de um flanelinha
mais ousado. Dispositivos lança-chamas, na lateral e na traseira
do veículo, mostravam-se capazes
de zelar pela tranqüilidade do
condutor.
Contento-me com o básico: vou
comprar um carro blindado.
Mas há sempre inovações tecnológicas nesse ramo.
No meu prédio, adotou-se uma
das mais baratas. Trata-se dos
gavetões para a entrega de pizzas.
Antes, num comportamento insensato, a margherita e a Coca-Cola passavam diretamente das
mãos do entregador para as do
condômino. Agora, tudo se faz
com mais racionalidade.
Dentro da guarita, o porteiro
abre o gavetão número 1, que dá
para o lado da rua; recolhe a pizza e insere-a no gavetão número
2, que dá para o lado de dentro do
condomínio. Retiro-a em segurança, deixando um cheque no
lugar. Falta providenciarem o gavetão aquecido: aí, estaremos vivendo num mundo perfeito.
O sistema deve ter sido inspirado em algum presídio de segurança máxima, com a óbvia diferença que, em vez de meras pizzas, o
que se entrega "em domicílio" são
celulares, drogas e fuzis.
Não sou tão bem informado como as autoridades estaduais a
respeito das atividades do PCC,
mas os dias de caos vividos em
São Paulo não chegaram a me
surpreender.
Surpreendeu-me, na verdade,
que tenhamos tido cinco anos de
intervalo entre a grande onda de
atentados de 2001 e as cenas de
guerra civil agora registradas. O
que terá acontecido entre um episódio e outro?
Antes que alguém cogite de
acordos de cavalheiros, estou seguro (seguro?) de que, depois dos
últimos assassinatos de PMs e
atentados a delegacias, represálias duríssimas irão acontecer.
Mais um motivo, aliás, para eu
blindar o carro. Tenho medo de
que, numa ação de combate, a
polícia me confunda com algum
traficante; ou que uma bala perdida entre perseguidos e perseguidores atravesse minha trêmula
lataria.
Muita gente se assustou ao ver o
teledocumentário "Falcão". Nada me impressionou mais, entretanto, do que o livro "Elite da
Tropa" (editora Objetiva), escrito
por Luiz Eduardo Soares, André
Batista e Rodrigo Pimentel. Estes
dois últimos foram membros do
Bope, o Batalhão de Operações
Policiais Especiais da PM do Rio.
Eles contam do que a polícia é capaz de fazer, quando atingida nos
seus brios.
Basta citar um dos hinos oficiais do batalhão: "Homem de
preto,/ Qual é a sua missão? É invadir favela/ E deixar corpo no
chão./ Se perguntas de onde venho/ e qual é minha missão:/ trago a morte e o desespero,/ e a total
destruição".
Isso é o que eles cantam aos
quatro ventos. Imagine o que fazem escondido. Não, você não poderia imaginar. Melhor ler o livro.
E como se chocar se os policiais
se entregarem à mais selvagem
vingança, com ou sem a anuência
de seus superiores, ao se verem
desmoralizados pelo PCC?
Parece-me incrível, de todo modo, que polícia e autoridades se
digam capazes de garantir a ordem pública nas ruas, se nem sequer dentro dos presídios, onde os
criminosos estão sob sua vigilância permanente, há um mínimo
controle da situação.
Tiro (tiro?) de tudo isso duas lições otimistas. A primeira é que
sempre tive vontade de me mudar
para o Rio. Quem sabe para a Rocinha, que não é das regiões mais
caras por enquanto, e talvez daqui a 30 anos ou mais (viverei até
lá?) conste como uma região pitoresca e turística da cidade, com
suas vielas de sabor medieval.
A segunda é que, com inimigos
como o PCC, diminui o irritante
complexo de valentia que andava
tomando conta da opinião pública no caso de Evo Morales. Uma
retórica da "firmeza" -alguns
disseram do "porrete"- ganhava
livre curso; o ex-governador Alckmin não teve pequeno destaque
naquela macheza toda.
Será que Evo, os traficantes e figuras como Marco Aurélio Garcia estão mancomunados para
destruir a candidatura Alckmin?
Eis uma teoria da conspiração e
tanto, para rivalizar com as do
PT.
Não sigo em frente. No caso boliviano, estou com Lula: sou da
paz e do amor. Dentro do carro
blindado, é claro.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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