São Paulo, quarta-feira, 17 de maio de 2006

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MARCELO COELHO

Hora de tomar minhas providências

Há coisa de três semanas perguntei a uma amiga que já foi vítima de assalto e de tentativa de seqüestro se ela planejava blindar o carro. Respondeu-me que não. "Ah, se for para pensar assim..."
Entendi que isso representaria, para ela, uma espécie de derrota pessoal. Não que ela fosse de esquerda ou que ela tivesse preconceito quanto ao estilo de vida dos grandes milionários. Mas blindar o carro seria reconhecer, de uma vez por todas, a impossibilidade de levar uma vida normal, civil, numa cidade como São Paulo.
Equivaleria a reconhecer um estado de guerra permanente nas ruas em que circulamos. Mais do que isso, seria deixar uma outra pergunta sem resposta: por que não se mudar para outra cidade? Alguém aceitaria um bom emprego em Bagdá?
Por trás disso tudo, há uma confissão de fracasso pessoal. Queremos nos proteger por uma questão de bom senso, de racionalidade privada. Entretanto, quanto maiores são os custos dessa atitude, mais somos confrontados com a irracionalidade coletiva, com o absurdo da situação social em que vivemos.
Comportar-se racionalmente numa sociedade irracional envolve, assim, negar o mundo à nossa volta, reduzindo a zero qualquer contato com o exterior.
Vi uma vez na televisão que, em algum país oriental mais desenvolvido que o Brasil (não me lembro se a Coréia, a Tailândia ou a Indonésia), a indústria automobilística tinha desenvolvido mecanismos especialmente engenhosos no esforço de, vamos dizer, dissuadir a abordagem de elementos criminosos.
Havia, por um exemplo, um jogo de lâminas retráteis, correndo por baixo da carroceria, capaz de amputar os pés de um flanelinha mais ousado. Dispositivos lança-chamas, na lateral e na traseira do veículo, mostravam-se capazes de zelar pela tranqüilidade do condutor.
Contento-me com o básico: vou comprar um carro blindado.
Mas há sempre inovações tecnológicas nesse ramo.
No meu prédio, adotou-se uma das mais baratas. Trata-se dos gavetões para a entrega de pizzas. Antes, num comportamento insensato, a margherita e a Coca-Cola passavam diretamente das mãos do entregador para as do condômino. Agora, tudo se faz com mais racionalidade.
Dentro da guarita, o porteiro abre o gavetão número 1, que dá para o lado da rua; recolhe a pizza e insere-a no gavetão número 2, que dá para o lado de dentro do condomínio. Retiro-a em segurança, deixando um cheque no lugar. Falta providenciarem o gavetão aquecido: aí, estaremos vivendo num mundo perfeito.
O sistema deve ter sido inspirado em algum presídio de segurança máxima, com a óbvia diferença que, em vez de meras pizzas, o que se entrega "em domicílio" são celulares, drogas e fuzis.
Não sou tão bem informado como as autoridades estaduais a respeito das atividades do PCC, mas os dias de caos vividos em São Paulo não chegaram a me surpreender.
Surpreendeu-me, na verdade, que tenhamos tido cinco anos de intervalo entre a grande onda de atentados de 2001 e as cenas de guerra civil agora registradas. O que terá acontecido entre um episódio e outro?
Antes que alguém cogite de acordos de cavalheiros, estou seguro (seguro?) de que, depois dos últimos assassinatos de PMs e atentados a delegacias, represálias duríssimas irão acontecer.
Mais um motivo, aliás, para eu blindar o carro. Tenho medo de que, numa ação de combate, a polícia me confunda com algum traficante; ou que uma bala perdida entre perseguidos e perseguidores atravesse minha trêmula lataria.
Muita gente se assustou ao ver o teledocumentário "Falcão". Nada me impressionou mais, entretanto, do que o livro "Elite da Tropa" (editora Objetiva), escrito por Luiz Eduardo Soares, André Batista e Rodrigo Pimentel. Estes dois últimos foram membros do Bope, o Batalhão de Operações Policiais Especiais da PM do Rio. Eles contam do que a polícia é capaz de fazer, quando atingida nos seus brios.
Basta citar um dos hinos oficiais do batalhão: "Homem de preto,/ Qual é a sua missão? É invadir favela/ E deixar corpo no chão./ Se perguntas de onde venho/ e qual é minha missão:/ trago a morte e o desespero,/ e a total destruição".
Isso é o que eles cantam aos quatro ventos. Imagine o que fazem escondido. Não, você não poderia imaginar. Melhor ler o livro.
E como se chocar se os policiais se entregarem à mais selvagem vingança, com ou sem a anuência de seus superiores, ao se verem desmoralizados pelo PCC?
Parece-me incrível, de todo modo, que polícia e autoridades se digam capazes de garantir a ordem pública nas ruas, se nem sequer dentro dos presídios, onde os criminosos estão sob sua vigilância permanente, há um mínimo controle da situação.
Tiro (tiro?) de tudo isso duas lições otimistas. A primeira é que sempre tive vontade de me mudar para o Rio. Quem sabe para a Rocinha, que não é das regiões mais caras por enquanto, e talvez daqui a 30 anos ou mais (viverei até lá?) conste como uma região pitoresca e turística da cidade, com suas vielas de sabor medieval.
A segunda é que, com inimigos como o PCC, diminui o irritante complexo de valentia que andava tomando conta da opinião pública no caso de Evo Morales. Uma retórica da "firmeza" -alguns disseram do "porrete"- ganhava livre curso; o ex-governador Alckmin não teve pequeno destaque naquela macheza toda.
Será que Evo, os traficantes e figuras como Marco Aurélio Garcia estão mancomunados para destruir a candidatura Alckmin? Eis uma teoria da conspiração e tanto, para rivalizar com as do PT.
Não sigo em frente. No caso boliviano, estou com Lula: sou da paz e do amor. Dentro do carro blindado, é claro.

@ - coelhofsp@uol.com.br


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