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CONTINUAÇÃO DA CAPA
Tunga questiona toda ordem da arte
LISETTE LAGNADO
especial para a Folha
Uma das declarações mais frequentes nas entrevistas de Catherine David, curadora da mostra Documenta de Kassel, defende a dissolução do espaço museológico.
A idéia ressoa com alguma reminiscência do discurso que acompanhou as experiências artísticas
realizadas nos anos 60-70. Mas seu
objetivo tem um tom crítico: o que
distingue a produção atual e como
o presente permite uma releitura
de paradigmas históricos?
Não deixa de ser sintomático
que, na mostra de artes de maior
prestígio, a participação de um escultor da importância de Tunga
consista nos vestígios de um acontecimento efêmero.
Levar para Kassel obras que contam com a gestualidade de alguns
atores, privilegiando a linguagem
da performance, contrapõe-se ao
peso e gigantismo das esculturas
que o artista havia exposto nas Bienais de São Paulo: imensa cabeleira de metal (1987) e conjunto de
sinos monumentais (1994).
Para definir esse novo gênero,
Tunga introduziu o termo "instauração", conceito flutuante que
reúne elementos da performance e
da instalação.
Captar a fagulha de vida em seu
deslizar no espaço remete às danças-performances de Robert Morris, sobretudo à percepção corpórea da obra.
Num plano de equivalência,
Tunga propõe três peças, cada
uma delas ocorrendo em tempos
simultâneos: o espectro de uma
ação (obra em movimento) e as
marcas desta passagem sobre a
matéria (obra estática). O título
"Inside Out - Upside Down" indica que todos os aspectos foram virados pelo avesso: a perda voluntária das insuspeitas categorias estéticas.
O campo da instauração mantém uma afinidade com o campo
da experiência real de Hélio Oiticica (1937-1980) e Lygia Clark
(1920-1988).
Presentes ambos no núcleo histórico desta Documenta, sublinhavam a descoberta de uma experiência primeira e espontânea, o
diálogo sujeito-objeto: "Somos os
propositores: somos o molde; a
vocês cabe o sopro no interior desse molde: o sentido de nossa existência. Sós, não existimos; estamos
a vosso dispor. Somos os propositores: enterramos a 'obra de arte'
como tal e solicitamos a vocês para
que o pensamento viva pela ação"
(Lygia Clark, 1968).
É possível identificar uma linha
decorrente em toda a trajetória de
Tunga. As situações, dirigidas pelo
artista sem sua presença direta,
mesclam aspectos ritualísticos,
num transe hipnótico.
Construir uma narrativa circular
sempre integrou seu vocabulário.
Em 1981, apresentou, na 16ª Bienal
de São Paulo, uma instalação audiovisual projetando uma visão
infinita de um trajeto dentro de
um túnel ao contínuo som da música "Night and Day", de Frank Sinatra. Como em Beckett, o espaço
discursivo não conhece repouso, o
sujeito precisa habitar o tempo,
nascer de novo, animal, mineral
ou vegetal.
Sua gana da matéria impõe uma
reflexão acerca da heterogeneidade dos impulsos do erotismo. Desde 1973, com a exibição de uma série de desenhos intitulados "Museu da Masturbação Infantil",
Tunga vem refutando o discurso
do patológico (ciência) e da transgressão (religião).
Procura simplesmente dar conta
de um mecanismo interior que
obedece a lei da natureza. Em exposição recente, bronzes maquiados com batom acentuavam o caráter hermafrodita de formas cônicas (cálice, garrafa, sino e funil).
A excitação erótica chega a seu
auge no crime (Sade), como atesta
a obra "Experiência de Física Sutil", onde sete jovens carregam
malas, deixando cair partes do
corpo do artista moldadas em gesso.
Já a peça "Tarde Vos Amei", inspirada numa confissão de Santo
Agostinho, trazia toda a mística do
erotismo sagrado: um tripé de velas acesas de 1,80 m cujo fogo, no
sétimo dia, atingia três termômetros. A instauração incide precisamente no momento em que ocorre
a explosão e o mercúrio se espalha
no ambiente. A aproximação com
o real dá-se na imersão escatológica.
Outro ato instaurado: em "Querido Amigo", sete mulheres nuas
de cócoras imprimem suas genitálias sobre uma argila úmida. Com
uma sensualidade quase aberrante, Tunga deixa aflorar um desejo
interior na matéria: argila e vulvas
desejando-se mutuamente, invocando Oiticica: "a obra nasce de
apenas um toque na matéria".
Em "Xifópagas Capilares", unidades gemelares rodeavam a questão da dissimetria, do sacrifício e
da inquietante imagem do outro.
Para interromper a descontinuidade do ser e das coisas, o único
ato que resta é comer o outro (imagem de duas lagartixas devorando-se até abolir os limites do um e
do outro, na confusão da totalidade unívoca).
Vários domínios do conhecimento são tragados para dentro da
matéria, imantando-se aos montes, como nos campos magnéticos
das esculturas de Tunga: alquimia,
arqueologia, mitologia, teologia,
matemática, física, antropologia.
Mas cada um denota uma insuficiência diante dos enigmas do
mundo. Algo informe resulta desse amálgama de informações, que
poderia ser chamado de "escultura de ação" ou "pintura viva", os
termos não importam.
Diante da crise da racionalidade,
o erotismo permanece como valor, força capaz de desequilibrar os
fundamentos do simulacro.
Lisette Lagnado é autora de "Conversações
com Iberê Camargo" e "Leonilson. São Tantas as
Verdades". Foi curadora das exposições "A Presença do Readymade, 80 anos" e do projeto
"Antarctica Artes com a Folha"
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