São Paulo, terça, 17 de junho de 1997.



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CONTINUAÇÃO DA CAPA
Tunga questiona toda ordem da arte

LISETTE LAGNADO
especial para a Folha

Uma das declarações mais frequentes nas entrevistas de Catherine David, curadora da mostra Documenta de Kassel, defende a dissolução do espaço museológico.
A idéia ressoa com alguma reminiscência do discurso que acompanhou as experiências artísticas realizadas nos anos 60-70. Mas seu objetivo tem um tom crítico: o que distingue a produção atual e como o presente permite uma releitura de paradigmas históricos?
Não deixa de ser sintomático que, na mostra de artes de maior prestígio, a participação de um escultor da importância de Tunga consista nos vestígios de um acontecimento efêmero.
Levar para Kassel obras que contam com a gestualidade de alguns atores, privilegiando a linguagem da performance, contrapõe-se ao peso e gigantismo das esculturas que o artista havia exposto nas Bienais de São Paulo: imensa cabeleira de metal (1987) e conjunto de sinos monumentais (1994).
Para definir esse novo gênero, Tunga introduziu o termo "instauração", conceito flutuante que reúne elementos da performance e da instalação.
Captar a fagulha de vida em seu deslizar no espaço remete às danças-performances de Robert Morris, sobretudo à percepção corpórea da obra.
Num plano de equivalência, Tunga propõe três peças, cada uma delas ocorrendo em tempos simultâneos: o espectro de uma ação (obra em movimento) e as marcas desta passagem sobre a matéria (obra estática). O título "Inside Out - Upside Down" indica que todos os aspectos foram virados pelo avesso: a perda voluntária das insuspeitas categorias estéticas.
O campo da instauração mantém uma afinidade com o campo da experiência real de Hélio Oiticica (1937-1980) e Lygia Clark (1920-1988).
Presentes ambos no núcleo histórico desta Documenta, sublinhavam a descoberta de uma experiência primeira e espontânea, o diálogo sujeito-objeto: "Somos os propositores: somos o molde; a vocês cabe o sopro no interior desse molde: o sentido de nossa existência. Sós, não existimos; estamos a vosso dispor. Somos os propositores: enterramos a 'obra de arte' como tal e solicitamos a vocês para que o pensamento viva pela ação" (Lygia Clark, 1968).
É possível identificar uma linha decorrente em toda a trajetória de Tunga. As situações, dirigidas pelo artista sem sua presença direta, mesclam aspectos ritualísticos, num transe hipnótico.
Construir uma narrativa circular sempre integrou seu vocabulário. Em 1981, apresentou, na 16ª Bienal de São Paulo, uma instalação audiovisual projetando uma visão infinita de um trajeto dentro de um túnel ao contínuo som da música "Night and Day", de Frank Sinatra. Como em Beckett, o espaço discursivo não conhece repouso, o sujeito precisa habitar o tempo, nascer de novo, animal, mineral ou vegetal.
Sua gana da matéria impõe uma reflexão acerca da heterogeneidade dos impulsos do erotismo. Desde 1973, com a exibição de uma série de desenhos intitulados "Museu da Masturbação Infantil", Tunga vem refutando o discurso do patológico (ciência) e da transgressão (religião).
Procura simplesmente dar conta de um mecanismo interior que obedece a lei da natureza. Em exposição recente, bronzes maquiados com batom acentuavam o caráter hermafrodita de formas cônicas (cálice, garrafa, sino e funil).
A excitação erótica chega a seu auge no crime (Sade), como atesta a obra "Experiência de Física Sutil", onde sete jovens carregam malas, deixando cair partes do corpo do artista moldadas em gesso.
Já a peça "Tarde Vos Amei", inspirada numa confissão de Santo Agostinho, trazia toda a mística do erotismo sagrado: um tripé de velas acesas de 1,80 m cujo fogo, no sétimo dia, atingia três termômetros. A instauração incide precisamente no momento em que ocorre a explosão e o mercúrio se espalha no ambiente. A aproximação com o real dá-se na imersão escatológica.
Outro ato instaurado: em "Querido Amigo", sete mulheres nuas de cócoras imprimem suas genitálias sobre uma argila úmida. Com uma sensualidade quase aberrante, Tunga deixa aflorar um desejo interior na matéria: argila e vulvas desejando-se mutuamente, invocando Oiticica: "a obra nasce de apenas um toque na matéria".
Em "Xifópagas Capilares", unidades gemelares rodeavam a questão da dissimetria, do sacrifício e da inquietante imagem do outro. Para interromper a descontinuidade do ser e das coisas, o único ato que resta é comer o outro (imagem de duas lagartixas devorando-se até abolir os limites do um e do outro, na confusão da totalidade unívoca).
Vários domínios do conhecimento são tragados para dentro da matéria, imantando-se aos montes, como nos campos magnéticos das esculturas de Tunga: alquimia, arqueologia, mitologia, teologia, matemática, física, antropologia. Mas cada um denota uma insuficiência diante dos enigmas do mundo. Algo informe resulta desse amálgama de informações, que poderia ser chamado de "escultura de ação" ou "pintura viva", os termos não importam.
Diante da crise da racionalidade, o erotismo permanece como valor, força capaz de desequilibrar os fundamentos do simulacro.


Lisette Lagnado é autora de "Conversações com Iberê Camargo" e "Leonilson. São Tantas as Verdades". Foi curadora das exposições "A Presença do Readymade, 80 anos" e do projeto "Antarctica Artes com a Folha"




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