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LIVROS
Crítica/romance
Kenzaburo Oe desafia em memórias a consciência japonesa
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
É espantosa a capacidade
dos escritores japoneses modernos em pôr a
nu suas obsessões seja na via
ficcional, seja na da literatura
de testemunho. Mishima não
mediu tintas para louvar a beleza do corpo masculino.
Junichiro Tanizaki descreveu com detalhes a paixão erótico-masoquista de um velho
(ele próprio) por uma mulher
mais jovem. Nos textos autobiográficos de "Jovens de um
Novo Tempo, Despertai!", Kenzaburo Oe (ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de
1994) aproveita o mote do relacionamento com o filho excepcional para submeter a si mesmo e o Japão ao crivo de um rigoroso exame de consciência.
Seu primogênito nasceu com
um segundo cérebro, externo e
inativo, extraído cirurgicamente. Ao jovem de agora quase 20
anos, Oe quer legar um livro de
definições "do mundo, da sociedade, do ser humano", mas
descobre que muitos dos temas
escapam à explicação.
William Blake
Para elaborar a obra, que se
compõe de um conjunto de sete
relatos, o escritor recorre ao
poeta e pintor inglês William
Blake (1757-1827). Empresta a
esse visionário romântico não
só o título e o nome de cada
uma das sete partes do livro, como também numerosos outros
trechos, imagens e considerações cosmogônicas.
Muitas das referências contemporâneas são cifradas, mas
elucidáveis. O "escritor suicida" M., por exemplo, é Mishima. Oe descreve a aura idólatra
que cerca o autor, a qual alimenta estranhas milícias radicais. Oe faz críticas ao suicídio
ritual de M., "um dos mais bem
elaborados espetáculos políticos do pós-guerra", que culmina com o detalhe da cabeça decepada, posta a prumo no chão.
Ironicamente, Oe teme a vingança dos milicianos, mas, ao
cabo, são eles que salvam seu filho de um afogamento.
Infidelidade e pesadelo
Oe não se exime da repreensão. Revela o horror das primeiras semanas após o nascimento do filho, quando lhe desejou a morte, e menciona episódio de infidelidade conjugal.
Mas um dos trechos mais impressionantes relaciona-se a
um pesadelo. O escritor sonha
com o primogênito como um
monstro reptiliano de falo em
riste, expelindo sêmen e sangue, enquanto ele próprio roça
o nariz no baixo-ventre da fera.
O escritor diz que a imagem
lhe foi inspirada por uma gravura de Blake, "O Espectro de
uma Pulga". O desenho mostra
uma sinistra figura humanóide
coberta de escamas e com a língua apontada para uma tigela
cheia de sangue. A cupidez do
monstro tem, claro, conotação
sexual.
Durante a ausência do pai,
em viagem na Alemanha, o filho desenvolve um comportamento violento. Na volta, Oe
compara os olhos do primogênito aos de "uma fera no cio".
Mais tarde, porém, atribui a
concupiscência entrevista ao
próprio desejo, despertado pelo reencontro com uma antiga
amante. Foi sua luxúria que viu
espelhar-se nos olhos do filho.
São essas pequenas confissões, entretecidas numa prosa
eficiente de imagens poderosas, que mostram que Oe não é
indigno de Blake, de quem cita
os seguintes versos: "Sou como
um átomo/ Um Nada perdido
na escuridão, mas mesmo assim sou alguém/ Desejo e sinto
e choro e gemo".
JOVENS DE UM NOVO TEMPO, DESPERTAI!
Autor: Kenzaburo Oe
Tradução: Leiko Gotoda
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 47 (304 págs.)
NA INTERNET - Leia trecho
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