São Paulo, sábado, 17 de junho de 2006

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LIVROS

Crítica/romance
Kenzaburo Oe desafia em memórias a consciência japonesa

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

É espantosa a capacidade dos escritores japoneses modernos em pôr a nu suas obsessões seja na via ficcional, seja na da literatura de testemunho. Mishima não mediu tintas para louvar a beleza do corpo masculino.
Junichiro Tanizaki descreveu com detalhes a paixão erótico-masoquista de um velho (ele próprio) por uma mulher mais jovem. Nos textos autobiográficos de "Jovens de um Novo Tempo, Despertai!", Kenzaburo Oe (ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1994) aproveita o mote do relacionamento com o filho excepcional para submeter a si mesmo e o Japão ao crivo de um rigoroso exame de consciência.
Seu primogênito nasceu com um segundo cérebro, externo e inativo, extraído cirurgicamente. Ao jovem de agora quase 20 anos, Oe quer legar um livro de definições "do mundo, da sociedade, do ser humano", mas descobre que muitos dos temas escapam à explicação.

William Blake
Para elaborar a obra, que se compõe de um conjunto de sete relatos, o escritor recorre ao poeta e pintor inglês William Blake (1757-1827). Empresta a esse visionário romântico não só o título e o nome de cada uma das sete partes do livro, como também numerosos outros trechos, imagens e considerações cosmogônicas.
Muitas das referências contemporâneas são cifradas, mas elucidáveis. O "escritor suicida" M., por exemplo, é Mishima. Oe descreve a aura idólatra que cerca o autor, a qual alimenta estranhas milícias radicais. Oe faz críticas ao suicídio ritual de M., "um dos mais bem elaborados espetáculos políticos do pós-guerra", que culmina com o detalhe da cabeça decepada, posta a prumo no chão.
Ironicamente, Oe teme a vingança dos milicianos, mas, ao cabo, são eles que salvam seu filho de um afogamento.

Infidelidade e pesadelo
Oe não se exime da repreensão. Revela o horror das primeiras semanas após o nascimento do filho, quando lhe desejou a morte, e menciona episódio de infidelidade conjugal. Mas um dos trechos mais impressionantes relaciona-se a um pesadelo. O escritor sonha com o primogênito como um monstro reptiliano de falo em riste, expelindo sêmen e sangue, enquanto ele próprio roça o nariz no baixo-ventre da fera.
O escritor diz que a imagem lhe foi inspirada por uma gravura de Blake, "O Espectro de uma Pulga". O desenho mostra uma sinistra figura humanóide coberta de escamas e com a língua apontada para uma tigela cheia de sangue. A cupidez do monstro tem, claro, conotação sexual.
Durante a ausência do pai, em viagem na Alemanha, o filho desenvolve um comportamento violento. Na volta, Oe compara os olhos do primogênito aos de "uma fera no cio".
Mais tarde, porém, atribui a concupiscência entrevista ao próprio desejo, despertado pelo reencontro com uma antiga amante. Foi sua luxúria que viu espelhar-se nos olhos do filho.
São essas pequenas confissões, entretecidas numa prosa eficiente de imagens poderosas, que mostram que Oe não é indigno de Blake, de quem cita os seguintes versos: "Sou como um átomo/ Um Nada perdido na escuridão, mas mesmo assim sou alguém/ Desejo e sinto e choro e gemo".


JOVENS DE UM NOVO TEMPO, DESPERTAI!
    
Autor: Kenzaburo Oe
Tradução: Leiko Gotoda
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 47 (304 págs.)

NA INTERNET - Leia trecho


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