São Paulo, quarta, 17 de junho de 1998

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Você sabe o que é um Mac Lanche Feliz? Leia Mirisola

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

"Ela sabia o que era um Mac Lanche Feliz. E mais: ela sabia que no McDonald's não existem palitos de dente, a bem dizer, a única chance de a doutorazinha recuperar a conversa para si e de se livrar de mim que, trocando alhos por bugalhos -mas nem tanto-, fazia o tipo empreendedor visionário, eu mesmo, assim de sopetão, passei do antropólogo desbundado para o ultraliberal de carteirinha, virado no capeta (não entendo)."
Não entendeu? Continuo mais um pouco.
"Comecei com a história da hidrovia do Quércia. Enchi o saco da moça com o tal "projeto' de navegação fluvial: "porque vai ligar o rio Tietê em São Paulo aos Estados do Centro-Sul e Sul do país, só a economia em cubicagem graneleira vai dar para fazer...' ...Fazer sei lá o quê, e ainda falei da careca de dona Ika Fleury e defendi com veemência a administração do dr. Luiz Antônio... Eu juro que sim, virado no capeta. (...) Ela não me entendia."
Continuamos sem entender também.
"Então mudei de assunto. Comecei falando da nostalgia sentida pela falta do programa do Bolinha na TV. Edson Bolinha Cury. Ela novamente não entendeu."
Último recurso.
"De modo que vislumbrei uns ajustes. Inventei uma história de viuvez e desamparo e outra história de traição e reconciliação, um saco, mas lá estávamos na fila do cinema. Fiz o tipo conduzindo uma foda para depois... E lati baixinho para que ela não me ouvisse, três vezes, tamanha felicidade: au, au, au."
É assim, com três latidos, que termina um conto do livro intitulado "Fátima Fez os Pés para Mostrar na Choperia" (ed. Estação Liberdade), de autoria de Marcelo Mirisola.
Marcelo Mirisola? Quem é Marcelo Mirisola? É um autor estreante, de seus 30 e poucos anos, que mora atualmente em Santa Catarina (Praia do Santinho) e que, tudo indica, passou a infância em Santos cercado de tias, sorvetes de pistache, churros e atividade sexual clandestina.
Acho um pouco embaraçoso, como articulista, sair por aí proclamando uma "descoberta literária". Todo crítico tem essa pretensão, a de ser uma espécie de autor do autor, de criador do criador.
Ficou famoso o artigo que o compositor Robert Schumann escreveu a respeito de um contemporâneo seu. Nos artigos de crítica que escrevia para a imprensa alemã, Schumann imaginou dois personagens contrastantes, Eusebius e Florestan, um melancólico, outro entusiasta; não sei mais qual era o quê, mas me lembro de como começava um artigo: "Eusebius (ou Florestan) entrou na minha sala, jogou o chapéu para o ar e disse: "Senhores, descobri um gênio!'."
O gênio descoberto por Schumann, naquele artigo, era Chopin. A sorte de descobrir um gênio como Chopin ocorre raramente entre os críticos, mais famosos pelos erros que cometem do que pelos acertos em que caem.
De modo que seria ridículo se eu jogasse o chapéu para o alto e dissesse: "Descobri Marcelo Mirisola!" Mesmo porque não é verdade.
Recebo cartas e cartas, originais e manuscritos em quantidade, de pessoas pedindo opinião sobre seus exercícios literários. Poemas, contos, romances. No começo, achei importante responder a todo mundo. Depois, vi que não tinha tempo, e que a esmagadora maioria dos casos era, com perdão da palavra, sem salvação.
Marcelo Mirisola era um desses que me mandavam cartas e contos, eu tinha preguiça de responder, e foi minha mulher quem se entusiasmou ao ver o manuscrito em cima da mesa. Ela escreve o prefácio do livro agora. Faço este artigo porque, lendo o livro publicado, não posso me manter indiferente.
Nesses contos de Marcelo Mirisola, há uma raiva, uma inteligência, uma frustração que fazem do autor, digamos, a contrapartida machista, paulistana e branca de Marilene Felinto. Ou, para usar outra comparação: enquanto Dalton Trevisan insiste nos detalhes microscópicos (o dente de ouro, a unha roída, a correntinha no tornozelo, o muquinho no braço da mulher), Mirisola magnifica o fetiche, vira do avesso o microscópio.
A insistência, a obsessão, o lado "cabeça-dura" do escritor recebem, depois de Marilene Felinto, de Dalton Trevisan, de Nélson Rodrigues, uma nova solução. É sempre a tara, é sempre a raiva flaubertiana, é sempre o esporro de um Raduan Nassar em "Um Copo de Cólera".
Mas, de algum modo, é mais do que isso. Pois os autores acima citados têm uma visão objetiva da miséria sexual. A visão de Mirisola é subjetiva. A loucura, o tesão, a raiva explodem nos textos: o sexo vem de dentro, irresoluto.
Para que escrever mais? Há algo de incompleto, imagino, na arte de Mirisola; algo de excessivamente pessoal, de quase clandestino. Como uma masturbação. Mas é preferível citar trechos do que ele escreve. Transfiro ao leitor o julgamento.
"Conheci Maria de Fátima. Descasada, mãe do gordinho de doze anos, quando se tem doze anos, as mães chamam-se Maria de Fátima. Os filhos têm doze anos e são gordinhos. É por aí que as coisas acontecem. Eu ficava no quarto dos meninos."
Ou então: "Durou uns poucos minutos. Quando eu procurava esfihas. Ai, dona Cidinha. Ai, ai. Que fome! Duas e meia da madrugada e o Palácio das Esfihas estava fechado (...) Upa! Eu tenho canelas! Bem como joelhos e articulações e digamos as demais peças -este é o nome!-, as mesmas do balconista. Que ganha a vida lavando pratos e copos e atendendo os fregueses lá do jeito que lhe convém às duas e meia da madrugada. Um vocacionado, o balconista. Se ele soubesse do próprio talento, eu já estaria estaria ardendo nas profundezas do inferno".
Não entendeu ainda? Então arda nas profundezas do inferno.



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