|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Você sabe o que é um Mac Lanche Feliz? Leia Mirisola
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
"Ela sabia o que era um Mac
Lanche Feliz. E mais: ela sabia
que no McDonald's não existem palitos de dente, a bem dizer, a única chance de a doutorazinha recuperar a conversa
para si e de se livrar de mim
que, trocando alhos por bugalhos -mas nem tanto-, fazia
o tipo empreendedor visionário, eu mesmo, assim de sopetão, passei do antropólogo desbundado para o ultraliberal de
carteirinha, virado no capeta
(não entendo)."
Não entendeu? Continuo
mais um pouco.
"Comecei com a história da
hidrovia do Quércia. Enchi o
saco da moça com o tal "projeto' de navegação fluvial: "porque vai ligar o rio Tietê em São
Paulo aos Estados do Centro-Sul e Sul do país, só a economia em cubicagem graneleira vai dar para fazer...' ...Fazer
sei lá o quê, e ainda falei da
careca de dona Ika Fleury e defendi com veemência a administração do dr. Luiz Antônio... Eu juro que sim, virado
no capeta. (...) Ela não me entendia."
Continuamos sem entender
também.
"Então mudei de assunto.
Comecei falando da nostalgia
sentida pela falta do programa
do Bolinha na TV. Edson Bolinha Cury. Ela novamente não
entendeu."
Último recurso.
"De modo que vislumbrei uns
ajustes. Inventei uma história
de viuvez e desamparo e outra
história de traição e reconciliação, um saco, mas lá estávamos na fila do cinema. Fiz o
tipo conduzindo uma foda para depois... E lati baixinho para que ela não me ouvisse, três
vezes, tamanha felicidade: au,
au, au."
É assim, com três latidos, que
termina um conto do livro intitulado "Fátima Fez os Pés
para Mostrar na Choperia"
(ed. Estação Liberdade), de
autoria de Marcelo Mirisola.
Marcelo Mirisola? Quem é
Marcelo Mirisola? É um autor
estreante, de seus 30 e poucos
anos, que mora atualmente em
Santa Catarina (Praia do Santinho) e que, tudo indica, passou a infância em Santos cercado de tias, sorvetes de pistache, churros e atividade sexual
clandestina.
Acho um pouco embaraçoso,
como articulista, sair por aí
proclamando uma "descoberta
literária". Todo crítico tem essa pretensão, a de ser uma espécie de autor do autor, de
criador do criador.
Ficou famoso o artigo que o
compositor Robert Schumann
escreveu a respeito de um contemporâneo seu. Nos artigos de
crítica que escrevia para a imprensa alemã, Schumann imaginou dois personagens contrastantes, Eusebius e Florestan, um melancólico, outro entusiasta; não sei mais qual era
o quê, mas me lembro de como
começava um artigo: "Eusebius (ou Florestan) entrou na
minha sala, jogou o chapéu
para o ar e disse: "Senhores,
descobri um gênio!'."
O gênio descoberto por Schumann, naquele artigo, era
Chopin. A sorte de descobrir
um gênio como Chopin ocorre
raramente entre os críticos,
mais famosos pelos erros que
cometem do que pelos acertos
em que caem.
De modo que seria ridículo se
eu jogasse o chapéu para o alto
e dissesse: "Descobri Marcelo
Mirisola!" Mesmo porque não
é verdade.
Recebo cartas e cartas, originais e manuscritos em quantidade, de pessoas pedindo opinião sobre seus exercícios literários. Poemas, contos, romances. No começo, achei importante responder a todo mundo.
Depois, vi que não tinha tempo, e que a esmagadora maioria dos casos era, com perdão
da palavra, sem salvação.
Marcelo Mirisola era um
desses que me mandavam cartas e contos, eu tinha preguiça
de responder, e foi minha mulher quem se entusiasmou ao
ver o manuscrito em cima da
mesa. Ela escreve o prefácio do
livro agora. Faço este artigo
porque, lendo o livro publicado, não posso me manter indiferente.
Nesses contos de Marcelo Mirisola, há uma raiva, uma inteligência, uma frustração que
fazem do autor, digamos, a
contrapartida machista, paulistana e branca de Marilene
Felinto. Ou, para usar outra
comparação: enquanto Dalton
Trevisan insiste nos detalhes
microscópicos (o dente de ouro, a unha roída, a correntinha
no tornozelo, o muquinho no
braço da mulher), Mirisola
magnifica o fetiche, vira do
avesso o microscópio.
A insistência, a obsessão, o
lado "cabeça-dura" do escritor
recebem, depois de Marilene
Felinto, de Dalton Trevisan, de
Nélson Rodrigues, uma nova
solução. É sempre a tara, é
sempre a raiva flaubertiana, é
sempre o esporro de um Raduan Nassar em "Um Copo de
Cólera".
Mas, de algum modo, é mais
do que isso. Pois os autores acima citados têm uma visão objetiva da miséria sexual. A visão de Mirisola é subjetiva. A
loucura, o tesão, a raiva explodem nos textos: o sexo vem de
dentro, irresoluto.
Para que escrever mais? Há
algo de incompleto, imagino,
na arte de Mirisola; algo de excessivamente pessoal, de quase
clandestino. Como uma masturbação. Mas é preferível citar trechos do que ele escreve.
Transfiro ao leitor o julgamento.
"Conheci Maria de Fátima.
Descasada, mãe do gordinho
de doze anos, quando se tem
doze anos, as mães chamam-se
Maria de Fátima. Os filhos têm
doze anos e são gordinhos. É
por aí que as coisas acontecem.
Eu ficava no quarto dos meninos."
Ou então: "Durou uns poucos
minutos. Quando eu procurava esfihas. Ai, dona Cidinha.
Ai, ai. Que fome! Duas e meia
da madrugada e o Palácio das
Esfihas estava fechado (...)
Upa! Eu tenho canelas! Bem
como joelhos e articulações e
digamos as demais peças -este é o nome!-, as mesmas do
balconista. Que ganha a vida
lavando pratos e copos e atendendo os fregueses lá do jeito
que lhe convém às duas e meia
da madrugada. Um vocacionado, o balconista. Se ele soubesse do próprio talento, eu já
estaria estaria ardendo nas
profundezas do inferno".
Não entendeu ainda? Então
arda nas profundezas do inferno.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|