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ARIANO SUASSUNA
Elogio do Almanaque
Exatamente na terça, 4 de
julho, dia em que publiquei a
quase-despedida endereçada a
meus leitores do primeiro caderno, chega a minhas mãos a carta
de um leitor, João Batista Freire,
por coincidência também de
Campinas, como Cida Sepúlveda.
Dizia o seguinte: "Desde que o senhor passou a escrever uma coluna semanal na Folha, ficou muito
mais gostoso ler jornal. Sou assinante desse diário há tanto tempo
e poucas vezes vivi uma leitura tão
boa como a que faço na sua coluna. Posso mesmo dizer que me
apaixonei pelo seu jeito de escrever, mas uma paixão do tipo que
mais prefiro: não à primeira vista,
mas aos poucos, curtida, sorrateira. Quero lhe dizer que a minha
vida é melhor quando leio seus artigos. Pode parecer um exagero,
mas não é; a vida vai ficando boa
por causa de um amigo, de uma
comida, de uma moda de viola, de
uma poesia, de tanta coisa, que inclui o seu artigo semanal. Quero
lhe pedir uma coisa: porque morei na Paraíba quase nove anos e
virei admirador da poesia de cordel, gostaria que o senhor falasse
um pouco sobre isso, de preferência, que comentasse sobre o Zé Limeira, meu poeta favorito. Um
forte abraço, muito carinhoso. E
até a próxima coluna".
Ora, eu tinha dito, na quase-despedida, que não merecia, por
parte de ninguém, palavras como
as que o Cego Oliveira ouvira de
uma admiradora na hora de "esbarrar o toque". Aqui, não se tratava propriamente de esbarrar o
toque, mas de mudar-lhe o tom e
o tamanho, e a mudança fora, de
certa maneira, radical. Na versão
que eu fizera para o Prólogo do
Almanaque, o escritor Ariano
Suassuna desaparecia, substituído por quatro Personagens. E então, tocado pelas palavras de João
Batista Freire, fiquei pensando, de
modo desatinado e até meio paranóico: "Será que, nela, meus leitores irão estranhar demais a nova
forma de escrever? Será que vão
sentir falta de minha pessoa e do
tom de meus artigos anteriores?".
Então, na dúvida, voltei atrás
em minha decisão. Reescrevi o
Prólogo, mantendo o tom e o estilo que escolhera, mas continuando a fazer de mim mesmo seu
Narrador principal. Assim, minha vida, minhas opiniões, minhas atitudes e minhas idéias perante o Mundo serão mais ou menos retratadas aqui, de forma
fragmentária, neste Almanaque,
que contém aforismos, conversas
sobre as Artes em geral e a Literatura em particular; anedotas e
versos de Cantadores; enredos em
prosa e verso -conto, ensaio,
memória, poesia e teatro; um inventário dos três reinos da Natureza, com seus respectivos emblemas, signos e insígnias; críticas e
provérbios; discussões, polêmicas
e informações que espero sejam
proveitosas, por se tratar, nelas,
de religião, filosofia e política; sortilégios e esconjuros; casos verídicos; receitas, previsões e profecias; horóscopos e proposições de
enigmas; influências zodiacais,
medicinas, charadas etc.
Como se vê, este Almanaque é
uma espécie de Grande Logogrifo Brasileiro do Real e da Beleza.
Talvez os críticos e leitores mais
severos achem que seu tom, assim, o leva para uma certa falta de
seriedade. Se tal acontecer, a culpa
será minha, e não do Almanaque
como gênero. Normalmente é
grande a injustiça que se faz aos
Almanaques, que, neste mundo
falsamente "moderno" que vamos vivendo, constituem uma espécie de protesto. Em primeiro
lugar, protesto contra o isolamento estéril em que as Artes e as
Ciências vão se repartindo em especialidades cada vez mais separadas, cada uma delas egoisticamente encarando a si mesma como só e superior às outras. Depois, protesto contra o racionalismo descarnado e estéril dos cientificistas. É também uma indagação a respeito da ordem divina
que nos condenou à meia-cegueira e ao meio-desterro, aqui no
Mundo. Será que a fragmentação
do nosso já precário conhecimento é resultado da sanção que veio
castigar o crime inicial do Rebanho humano? Se foi isso que
aconteceu, talvez seja por causa
dele que se destroçou nossa visão
primitiva, perfeita e total do Mundo. Antes, abarcávamos, de um só
golpe, o presente, o passado e o
futuro. Ou melhor: tudo acontecia num eterno presente, que assim se entregava à nossa clara e
completa visão do Mundo.
Mas a falha que se introduziu
em nós, ao que se diz por aquele
misterioso crime cometido por
nosso rebanho, desgarrou e dilacerou nossos olhos; e o Homem,
novo Édipo, novo Prometeu, passou a se debater no escuro, devorado pelo Abutre que é o enigma
do Mundo e da Vida. O Almanaque, contendo tudo aquilo que já
enumerei, é uma tentativa de resumo e explicação, precária, mas
totalizante, da Vida; uma rebelião
pacífica e não-luciferina; uma luta
contra o resto de enigma e escuridão que restou aqui, mesmo depois da vinda do Cristo, e que veio
se juntar ao Mal e à Morte como
salário do Crime comum. O Almanaque, como gênero, recusa-se àquelas friezas intelectuais, cerebralistas e isoladoras e é, no
mundo contemporâneo, um dos
últimos herdeiros do Humanismo; da posição daqueles que procuravam ser fiéis, ao mesmo tempo, ao conhecimento e à beleza; à
filosofia e à poesia; à ciência e à arte; ao claro real e ao enigma sombrio; ao cotidiano e ao sonho; a
tudo o que se entrega à reflexão
consciente, mas também ao que
nos inquieta nas escuras profundezas do inconsciente.
Fique então tudo aqui como um
Almanaque. E se este, uma vez ou
outra, chegar pelo menos perto
do Lunário ou do Calendário
Brasileiro do grande Gravador e
Poeta-de-Cordel nordestino que é
José Costa Leite, já me darei por
satisfeito.
(Continua na próxima semana.)
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