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São Paulo, quinta-feira, 17 de julho de 2003

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450 ANOS

Correspondência de jesuítas volta pela primeira vez ao país

Epístolas traçam a São Paulo de Anchieta

Eduardo Knapp/Folha Imagem
Monumento "Glória Imortal", inaugurado em 1925 como homenagem aos fundadores de São Paulo; ao fundo, o Pátio do Colégio


LAURA MATTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Frio "agudíssimo", de assustar europeu. O sino toca e as mulheres, "fervorosas" na fé, vão à igreja duas vezes por dia. Os homens preferem papear com amigos e só aparecem nas missas de domingo. Essa, que parece uma cidade do interior, é a pacata São Paulo de agosto de 1556, pelo olhar do padre Anchieta (1534-1597).
Nesse clima segue a detalhada narração dos costumes da época, em carta enviada pelo então irmão da Companhia de Jesus à sede da organização, em Roma. Considerados os primeiros documentos históricos de SP, epístolas de José de Anchieta e do padre Manuel da Nóbrega a seus superiores na Europa retornarão ao Brasil, pela primeira vez, para os 450 anos da cidade.
A exposição dos originais será no local onde, em 25 de janeiro de 1554, foi rezada a missa que marcou a fundação da capital paulista: o Pátio do Colégio, àquele tempo um descampado com uma cabana de palha feita por índios.
No início de 2004, o padre José Maria Fernandes Machado, 61, diretor do pátio, viajará a Roma para buscar caixas que guardam três tomos com cerca de 50 cartas cada um. Para autorizar a saída do material, a companhia exigiu contrato com seguradora internacional, a ser fechado em breve.
"É a primeira vez que se consegue a liberação. Eles aceitaram porque o Brasil foi o primeiro país a receber jesuítas e teve tratamento diferenciado por parte da companhia. Era seu "projeto de utopia". Sonhavam em criar aqui o Paraíso, uma sociedade isenta de vícios, a partir da catequese e da educação", afirma o religioso.
Os documentos foram selecionados por ele, que passou três meses na sede, no início do ano, pesquisando o arquivo. Fernandes optou pelos relatos dos primeiros 15 anos da história de SP.
Com ricas minúcias do cotidiano da colônia, as cartas funcionavam como um balanço dos jesuítas. Dependendo do período, eram trimestrais e até anuais.
"São os primeiros documentos históricos de SP. Como eram feitas para informar sobre os acontecimentos do local, são ricas em detalhes. Apesar de a maior parte do conteúdo não ser inédita, ver originais é interessante a pesquisadores e ao público em geral", diz Pedro Puntoni, professor de história colonial do Brasil na USP.
A redação de Anchieta, Nóbrega e cia. seguia um padrão formal e começava com um sumário dividido por itens ("1. Catequese diária em Piratininga e confiança que demonstravam sobretudo as mulheres; 2. Catequese dos homens, mormente pela conversação familiar" etc). Em seguida, o jesuíta desenvolvia o tema.
O objetivo da companhia era se informar sobre o trabalho nas diferentes regiões de atuação (América, África e Ásia) e dividir a experiência entre seus enviados.
Os superiores liam as cartas, grifavam trechos e faziam anotações no papel. Era uma forma de organizar as respostas, ora recheada de perguntas ora de conselhos. O que julgavam interessante era enviado como exemplo, positivo ou negativo, a outros missionários. Em algumas que virão ao Brasil, há grifos e comentários de Inácio de Loyola, fundador da ordem.
"Era a internet da época. Inácio estabeleceu esse esquema e ficou como pólo centralizador. Anchieta fazia suas experiências no planalto de Piratininga e mandava a Roma. Fatos relevantes eram enviados a outras regiões. Criou-se um sistema de comunicação mundial", diz Fernandes.
Hoje, 450 anos depois, o método segue. "Como diretor do pátio, tenho de escrever todo ano o que ocorre aqui e enviar a Roma. Essa entrevista [à Folha], por exemplo, será registrada. Por isso, os arquivos da companhia são de grande riqueza histórica. Dão notícias de fatos internos da organização e do que está acontecendo à sua volta."
O primeiro grupo de jesuítas, cujo superior era o padre Nóbrega, aportou no Brasil (em Salvador), em 1549. Anchieta veio na terceira leva, em 1553. Chegou à Bahia e, no ano seguinte, atingiu Piratininga, onde participou da fundação de SP. Muitas de suas cartas foram perdidas. "Às vezes, o portador, a cavalo, era assaltado ou a caravela afundava. Hoje, a companhia usa até internet."
A mostra será na cripta (galeria subterrânea da igreja do pátio), já utilizada para enterrar padres, índios e outros moradores da antiga vila. Hoje reformada, tem iluminação e temperatura ideais para a exposição. Os originais ficarão expostos em caixas de vidro. Como são cerca de 150 cartas, algumas extensas, é provável que a cada dia uma página seja virada, no esquema da exposição da carta de Pero Vaz de Caminha na Mostra do Redescobrimento (2000).
O material será escaneado e os visitantes, por computador, poderão ter a sensação de virar as folhas, que vão ter suas imagens projetadas num telão. "Será uma mostra quase toda virtual", diz Nina Lomônaco, assessora de história e museologia do pátio, que está organizando a exposição.
Os textos misturam latim, espanhol, português e até termos do tupi-guarani. Serão acompanhados de resumos com tradução. A companhia autorizou que permanecessem no país por um mês. É o tempo que vai durar a exposição, prevista para janeiro de 2004.


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