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LITERATURA
Ensaio sintético de Wander Melo Miranda faz boa apresentação do autor de "Vidas Secas" e "São Bernardo"
Livro destaca ironia de Graciliano Ramos
SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O poder de síntese é tão mal distribuído entre os mortais quanto
o dinheiro. Wander Melo Miranda é um privilegiado. Nas seis páginas iniciais do ensaio intitulado
"Graciliano Ramos", recém-editado pela Publifolha, consegue
não só sintetizar o estado atual
dos estudos sobre o romancista,
como também apresentar ao iniciante e ao especialista uma sólida
e rentável introdução à leitura das
suas obras.
Esse poder de síntese, que é o
dos poetas, já aparece na epígrafe
tomada a Murilo Mendes. Ali se
diz que as passadas trágicas do romancista escreveram a épica real
do Brasil, que explode desintegrado. Sob o comando de Graciliano,
a épica renascentista fez-se prosa
para ser lida na modernidade.
Tornou-se modesta para ser rigorosa. Ganhou mordacidade e crítica para deitar abaixo os pilares
de uma nação construída pela injustiça econômica e social. Cônscio da situação do intelectual num
país onde o analfabetismo é chaga, Graciliano soube que podia
apenas contar com "armas insignificantes, mas são armas".
Cimentada na experiência, a literatura de Graciliano vive na brecha aberta entre opostos e no conflito ali gerado e dali expandido
para a vida e a escrita. Wander levanta as extremidades que se
opõem: imaginação e memória,
texto literário e história, sujeito e
discurso, formação burguesa e
empenho político a favor do excluído. Levanta os extremos opostos, acentua a conjunção "e", que
paradoxalmente os distancia, para concluir que "o espaço de atuação intelectual e artística de Graciliano revela-se intervalar".
No intervalo, é o próprio corpo
dilacerado do artista, do brasileiro, que está sendo dramatizado.
Escreve Wander: "O corpo do sujeito, o do preso, mas também o
do menino, o dos retirantes, é o
lugar privilegiado onde se marca a
história e se enuncia, em carne viva, sem subterfúgios, a violência
desmedida do poder".
Os destaques da obra multifacetada de Graciliano serão analisados e interpretados nos sucessivos capítulos do livro. No romance de estréia, "Caetés", Wander
desentranha o enlace de Graciliano com os modernistas paulistas.
No romance histórico homônimo, que teria sido escrito pelo
narrador, o tema principal é a deglutição do bispo Sardinha pelos
índios, episódio presente no manifesto antropófago, de Oswald de
Andrade.
No entanto, em Graciliano, "o
índio é destituído de símbolo instituinte da nação e se transforma
na personagem ausente de um romance não-realizado". Percebe-se que, como em Machado de Assis, a figura retórica central no
texto de Graciliano é a ironia. Naquele romance, ironia em relação
à tradição literária, ao romance
histórico ou de fatura realista e
aos vanguardistas brasileiros.
Talvez o traço irônico seja responsável por certa dificuldade em
se ler Graciliano hoje. Apontados
com pertinência e constância por
Wander, os jogos irônicos poderão, no entanto, servir de lugar de
auto-reflexão para os jovens leitores. A ironia é diferente do humor, que borbulha como champanha na escrita das novas gerações, tomada pelo estilo Luis Fernando Verissimo.
Ao contrário do dito humorístico, a ironia não é engraçada. Ela
não se escancara. É furtiva e finge
brincar com a graça para poder
abrir o sorriso da mente. Ao ser
detectada nas entrelinhas pela
atenção crítica do leitor, serve-lhe
o manjar dos deuses. A ironia deixa para o humor o entreabrir dos
lábios em riso e para a chalaça, a
gargalhada estrepitosa. Os romances seguintes de Graciliano
aprimorarão as astúcias da ironia
frente ao leitor, sendo que este será cada vez mais requisitado para
dar sentido à trama que lê.
"Vidas secas" é um marco duplo. Ao centro da obra, espécie de
dobradiça, tanto aponta para a
miséria da vida rural quanto abre
espaço para uma crítica contundente dos desmandos do poder a
partir do Estado Novo. O romance tanto fecha o ciclo da ficção em
primeira pessoa quanto abre espaço para a escrita autobiográfica
de "Infância" e "Memórias do
Cárcere". A terceira pessoa narrativa de "Vidas Secas", escreve
Wander, "reconstitui, pela via literária, o hiato entre seu saber de
intelectual e a indigência dos retirantes alteridade que buscou
compreender pelo exercício da
palavra enxuta e medida".
A notável obra de Graciliano se
completa por dois depoimentos.
O relato da infância e o da sordidez nos porões da ditadura. É preciso tomar cuidado com o sentido
de depoimento, avisa Wander ao
leitor incauto. Em observação válida para os dois relatos, aclara:
"Por associações e derivações, as
memórias se escrevem como ficção, libertam-se da determinante
documental e abrem espaço para
a reinvenção do eu que escreve".
E complementa, detendo-se
agora nas "Memórias do Cárcere": "Lembrar é, para Graciliano,
esquecer-se enquanto sujeito-objeto da lembrança, esgueirar-se
para os cantos, colocar-se à margem do texto ser escrito por ele, ao
invés de escrevê-lo -, para que a
linguagem em processo intermitente de produção possa cumprir
seu papel de instrumento socializador da memória e afirmar o valor ético do narrado".
Silviano Santiago é escritor, poeta e
crítico, autor de, entre outros, "O Falso
Mentiroso" e "Uma Literatura nos Trópicos" (Rocco)
FOLHA EXPLICA GRACILIANO RAMOS.
Autor: Wander Melo Miranda. Editora:
Publifolha (96 págs.). Quanto: R$ 14,90
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