São Paulo, sábado, 17 de julho de 2010

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Gonçalo Tavares volta a sondar o mal

Novo livro de escritor português vencedor do Portugal Telecom fecha sua tetralogia sobre a sordidez humana

Em entrevista, autor analisa o potencial de crueldade do homem e conta que só no Brasil escreve como em casa


FABIO VICTOR
DE SÃO PAULO

Gonçalo M. Tavares rejeita a ideia de que os seus "livros pretos", como "A Máquina de Joseph Walser", que sai agora no Brasil, sejam um atestado de descrença na humanidade.
São, antes, sustenta o escritor português, um recado de que "nenhum de nós está fora do barco da maldade".
"O ser humano é potencialmente uma máquina da maldade. Mas é também uma máquina da bondade. Temos dois motores em funcionamento, o de fazer atos maldosos e um para atos bondosos.
E eu gostaria que esses livros servissem para que os leitores percebessem melhor o funcionamento dos seus motores", disse em entrevista por telefone à Folha, de Lisboa, onde vive.
A extensa (24 livros) e precoce obra de Tavares, 39 anos, funda-se em duas séries, "O Reino" e "O Bairro". "A Máquina de Joseph Walser" compõe a primeira, junto com o premiado "Jerusalém", "Um Homem: Klaus Klump" e "Aprender a Rezar na Era da Técnica", livros que abordam a maldade.
"O Bairro" reúne homenagens a escritores caros ao autor, como "O Senhor Valéry" e o "O Senhor Brecht" -e há espaço para graça e ludismo.
Tal leveza também se nota quando ele fala da crescente relação com o Brasil, iniciada com a vinda à Flip em 2005 e ampliada com o prêmio Portugal Telecom em 2007.
Tavares conta que na última visita escreveu aqui "páginas e páginas", o que não costuma conseguir fora de Lisboa. "O Brasil é um sítio em que me sinto perfeitamente em casa", justifica.

 

"O Reino" é um atestado de descrença na humanidade?
Não colocaria como descrença. Não diria que o olhar sobre estes personagens é para tentar ver o mal, mas é um olhar que tenta percebê-los completamente humanos. E no limite os comportamentos humanos têm uma base animalesca, que é quase linear -defender o espaço, o território, sobreviver.
Não acho útil, em 2010, [fazer] livros líricos, positivos. O que marca o século 20 -a Segunda Guerra, o Holocausto- são coisas muito fortes, com uma dupla marca, racionalidade e inteligência. Uma coisa que nos espanta é quando vemos uma biografia sobre Stálin ou Hitler e outras pessoas terríveis e percebemos que elas se apaixonaram, que havia quem gostava delas, que tinham gestos carinhosos.
O fato de percebermos que uma pessoa que fez atos terríveis tem atos também bondosos e também toma café e se levanta é muito importante, porque nos permite ver o contrário: que nós, que tomamos café e que nos levantamos, temos uma parte comum a elas e, em circunstâncias extremas, [podemos], até praticar atos que se aproximem desses atos terríveis.

O que significou, para você, a morte de Saramago?
Sempre tivemos uma relação afetuosa. Mas, para além das questões mais pessoais, está o buraco que foi perdermos um grande escritor. Em Portugal, Saramago, António Lobo Antunes e Agustina Bessa-Luís são marcantes para as gerações mais novas. A cada semana se vai tornando claro que não vão aparecer mais livros de um autor. Sentir isso é sentir uma perda muito forte.

São notórios os elogios dele à sua obra ("Não tem o direito de escrever tão bem com apenas 35 anos" e "Vaticinei-lhe o prêmio Nobel para daqui a trinta anos, ou mesmo antes, e penso que vou acertar. Só lamento não poder dar-lhe um abraço de felicitações quando isso suceder."). Como era a relação de vocês?
O que é mais relevante aí é salientar a generosidade e a atenção dele em relação ao meu trabalho, de um escritor de uma outra geração. Exige de nós que daqui a alguns anos fiquemos atentos às novas gerações que vão aparecendo. É um ato exemplar.
Recebi o Prêmio Saramago em 2005, quando o conheci pessoalmente. Depois nos encontramos algumas vezes em momentos marcantes.

Em 2005, você disse numa entrevista, antes de vir para a Flip: "Espero que os brasileiros comecem a me conhecer". Isso já aconteceu?
Isso foi a primeira vez que fui ao Brasil. Depois aconteceram várias coisas. Praticamente todos os meus livros estão editados aí. Muitos criadores, para teatro, artistas, começam a fazer coisas com os meus livros. Não há apenas a edição de livros, há uma conversa estabelecida.

Quando volta ao Brasil?
Tinha dois ou três convites para ir agora em agosto, mas não vou conseguir. Em novembro estive quase 15 dias aí, em Porto de Galinhas, depois em Ouro Preto, depois em São Paulo, no Portugal Telecom [foi novamente finalista]. Para além de ter sido um tempo muito forte e de ter sido muito bem recebido, eu escrevi imenso aí no Brasil, que é uma coisa que não acontece muito, quando viajo não consigo. E quando estive no Brasil e escrevi imenso, imenso, imenso. Páginas e páginas e páginas.

Quem sabe isso não lhe estimule a vir morar por um período no Brasil...
É, eu senti... Estive agora no México, em Moscou, e realmente nunca escrevi como no Brasil. Fiquei muito contente porque tinha quase assumido que quando estou em viagem não consigo escrever, mas o Brasil é um sítio em que me sinto perfeitamente em casa.
O fato de estar rodeado da língua portuguesa, no café, isso faz com que a pessoa não mude de barco. E o que senti que escrever no Brasil ou escrever em Lisboa era continuar no mesmo barco, enquanto quando estou em França ou em Itália a sensação é que estou num barco completamente diferente.


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