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Gonçalo Tavares volta a sondar o mal
Novo livro de escritor português vencedor do Portugal Telecom fecha sua tetralogia sobre a sordidez humana
Em entrevista, autor
analisa o potencial de
crueldade do homem e
conta que só no Brasil
escreve como em casa
FABIO VICTOR
DE SÃO PAULO
Gonçalo M. Tavares rejeita
a ideia de que os seus "livros
pretos", como "A Máquina
de Joseph Walser", que sai
agora no Brasil, sejam um
atestado de descrença na humanidade.
São, antes, sustenta o escritor português, um recado
de que "nenhum de nós está
fora do barco da maldade".
"O ser humano é potencialmente uma máquina da
maldade. Mas é também uma
máquina da bondade. Temos
dois motores em funcionamento, o de fazer atos maldosos e um para atos bondosos.
E eu gostaria que esses livros servissem para que os
leitores percebessem melhor
o funcionamento dos seus
motores", disse em entrevista por telefone à Folha, de
Lisboa, onde vive.
A extensa (24 livros) e precoce obra de Tavares, 39
anos, funda-se em duas séries, "O Reino" e "O Bairro".
"A Máquina de Joseph Walser" compõe a primeira, junto com o premiado "Jerusalém", "Um Homem: Klaus
Klump" e "Aprender a Rezar
na Era da Técnica", livros
que abordam a maldade.
"O Bairro" reúne homenagens a escritores caros ao autor, como "O Senhor Valéry"
e o "O Senhor Brecht" -e há
espaço para graça e ludismo.
Tal leveza também se nota
quando ele fala da crescente
relação com o Brasil, iniciada
com a vinda à Flip em 2005 e
ampliada com o prêmio Portugal Telecom em 2007.
Tavares conta que na última visita escreveu aqui "páginas e páginas", o que não
costuma conseguir fora de
Lisboa. "O Brasil é um sítio
em que me sinto perfeitamente em casa", justifica.
"O Reino" é um atestado de
descrença na humanidade?
Não colocaria como descrença. Não diria que o olhar
sobre estes personagens é
para tentar ver o mal, mas é
um olhar que tenta percebê-los completamente humanos. E no limite os comportamentos humanos têm uma
base animalesca, que é quase linear -defender o espaço, o território, sobreviver.
Não acho útil, em 2010,
[fazer] livros líricos, positivos. O que marca o século 20
-a Segunda Guerra, o Holocausto- são coisas muito
fortes, com uma dupla marca, racionalidade e inteligência. Uma coisa que nos espanta é quando vemos uma
biografia sobre Stálin ou Hitler e outras pessoas terríveis
e percebemos que elas se
apaixonaram, que havia
quem gostava delas, que tinham gestos carinhosos.
O fato de percebermos que
uma pessoa que fez atos terríveis tem atos também bondosos e também toma café e se
levanta é muito importante,
porque nos permite ver o
contrário: que nós, que tomamos café e que nos levantamos, temos uma parte comum a elas e, em circunstâncias extremas, [podemos],
até praticar atos que se aproximem desses atos terríveis.
O que significou, para você, a
morte de Saramago?
Sempre tivemos uma relação afetuosa. Mas, para além
das questões mais pessoais,
está o buraco que foi perdermos um grande escritor. Em
Portugal, Saramago, António Lobo Antunes e Agustina
Bessa-Luís são marcantes
para as gerações mais novas.
A cada semana se vai tornando claro que não vão aparecer mais livros de um autor.
Sentir isso é sentir uma perda
muito forte.
São notórios os elogios dele à
sua obra ("Não tem o direito
de escrever tão bem com apenas 35 anos" e "Vaticinei-lhe
o prêmio Nobel para daqui a
trinta anos, ou mesmo antes,
e penso que vou acertar. Só
lamento não poder dar-lhe
um abraço de felicitações
quando isso suceder."). Como era a relação de vocês?
O que é mais relevante aí é
salientar a generosidade e a
atenção dele em relação ao
meu trabalho, de um escritor
de uma outra geração. Exige
de nós que daqui a alguns
anos fiquemos atentos às novas gerações que vão aparecendo. É um ato exemplar.
Recebi o Prêmio Saramago
em 2005, quando o conheci
pessoalmente. Depois nos
encontramos algumas vezes
em momentos marcantes.
Em 2005, você disse numa entrevista, antes de vir para a
Flip: "Espero que os brasileiros comecem a me conhecer". Isso já aconteceu?
Isso foi a primeira vez que
fui ao Brasil. Depois aconteceram várias coisas. Praticamente todos os meus livros
estão editados aí. Muitos
criadores, para teatro, artistas, começam a fazer coisas
com os meus livros. Não há
apenas a edição de livros, há
uma conversa estabelecida.
Quando volta ao Brasil?
Tinha dois ou três convites
para ir agora em agosto, mas
não vou conseguir. Em novembro estive quase 15 dias
aí, em Porto de Galinhas, depois em Ouro Preto, depois
em São Paulo, no Portugal
Telecom [foi novamente finalista]. Para além de ter sido
um tempo muito forte e de ter
sido muito bem recebido, eu
escrevi imenso aí no Brasil,
que é uma coisa que não
acontece muito, quando viajo não consigo. E quando estive no Brasil e escrevi imenso, imenso, imenso. Páginas
e páginas e páginas.
Quem sabe isso não lhe estimule a vir morar por um período no Brasil...
É, eu senti... Estive agora
no México, em Moscou, e
realmente nunca escrevi como no Brasil. Fiquei muito
contente porque tinha quase
assumido que quando estou
em viagem não consigo escrever, mas o Brasil é um sítio
em que me sinto perfeitamente em casa.
O fato de estar rodeado da
língua portuguesa, no café,
isso faz com que a pessoa não
mude de barco. E o que senti
que escrever no Brasil ou escrever em Lisboa era continuar no mesmo barco, enquanto quando estou em
França ou em Itália a sensação é que estou num barco
completamente diferente.
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