São Paulo, sábado, 17 de julho de 2010

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CRÍTICA ROMANCE

Em fábula desencantada, maldade é uma expressão da fraqueza humana

JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA

Joseph Walser é um pobre diabo, embora seja mais correto afirmar que Walser é um fraco diabo. A cidade está em guerra, o inimigo invadiu os espaços. Existe destruição e morte. E a mulher está romanticamente envolvida com o encarregado da fábrica onde Walser trabalha. E Walser?
Walser não reage. A guerra e a violência não passam de "acontecimentos enfadonhos". As marcas físicas da destruição urbana devem ser ignoradas ou evitadas. O adultério da mulher não lhe merece o mais leve reparo.
E, sobre a morte nas ruas, a atenção de Walser concentra-se num único cadáver. Corrijo: na fivela do cinto de um cadáver. Um objeto precioso para a sua irracional coleção de objetos metálicos.
Eis as paixões de Walser: coisas; objetos; matéria. A felicidade não reside no espírito; a felicidade está nas rotinas tangíveis com que Walser observa, mede, cataloga a sua coleção; e, é claro, na máquina que Walser opera e com a qual tem uma relação próxima, dir-se-ia até emocional: quando a máquina para no fim do expediente, Walser concede-se ao único minuto de tristeza do dia.
Não é de admirar, por isso, que quando a máquina, em momento de distração, lhe amputa um dedo, a verdadeira dor para Walser não está na amputação propriamente dita. Está no inevitável afastamento da máquina.
"A Máquina de Joseph Walser" integra-se na tetralogia que Gonçalo M. Tavares, um dos mais aclamados (e prolíficos) escritores portugueses da nova geração, dedicou ao tema do Mal. Mas, neste caso, o Mal não está apenas na destruição bélica e na dissolução moral que rodeiam o anti-herói.
O autor entende que o Mal, à semelhança do que sugerem os textos sacros da tradição judaico-cristã, é uma expressão da fraqueza humana; ou, em Walser, o Mal reside na biografia de "um homem sem qualidades" que transformou sua indiferença e sua mediocridade numa forma perversa de soberba.
Como no poema de Goethe, Walser é o homem que nega. Nega o sentimento de amor por alguém; nega a vontade de ser mais e melhor do que é; nega, enfim, a vida e as suas contingências, como se a existência humana fosse apenas uma interminável sucessão de rotinas geométricas. E maquinais. Não conheço maior inferno.


A MÁQUINA DE JOSEPH WALSER

AUTOR Gonçalo M. Tavares
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 39 (168 págs.)
AVALIAÇÃO bom



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